Aristóteles: o justo natural e o justo legal

A cidade (polis), segundo Aristóteles, é a forma da comunidade humana na qual o homem pode florescer e realizar todas as suas virtudes, mais especificamente a virtude mais excelente: a justiça. A polis não é uma formação artificial, mas uma construção natural, espontânea; viver em comunidade é um atributo essencial do homem. Mas o homem não é um animal gregário como outros animais que vivem em sociedade; ele é um animal político. A sua peculiaridade é o logos, a capacidade racional, discursiva, deliberativa que faz com que a comunidade humana se constitua não apenas como garantia da sobrevivência, mas também como um espaço de realização da justiça.

Em uma comunidade natural ou sociedade primitiva há diferenças e desigualdades. A diversidade é natural e é benéfica para a prosperidade, mas há algumas desigualdades que equivalem a injustiças e que podem e devem ser mitigadas pelo homem. Quer se trate da justiça distributiva (cada um recebe do bem comum uma parte igual) ou da justiça comutativa (as coisas trocadas devem ter o mesmo valor), a justiça é, para Aristóteles, uma forma de equidade. Essa forma superior de justiça só pode ser realizada no interior da polis, por intermédio da lei, que deverá submeter todos igualmente (isonomia).

Ao distinguir o uso teórico e o uso prático da razão, Aristóteles troca a contemplação platônica da ideia de bem pela pergunta acerca do bem possível de ser atingível pela ação humana. A justiça também é pensada nessa esfera prática, sendo ressaltada na definição dada por Aristóteles como uma de suas principais marcas o fato de concernir ao bem alheio.

Em um sentido amplo, Aristóteles identifica a justiça com a obediência ao nomos, isto é, o conjunto de normas sociais. Esse termo, porém, é empregado pelo filósofo com certa ambiguidade, significando não apenas as leis, mas também os costumes, as formas da vida de dada sociedade. Em relação a essa moralidade social, Aristóteles nem a despreza nem a aceita acriticamente, mas busca nela o que há de verdadeiro e bom, levando em consideração que o êxito de uma legislação depende, em boa medida, de sua conformidade aos usos e costumes da sociedade no interior da qual ela é elaborada.

Na acepção mais estrita, como vimos, nomos corresponde às normas de direito positivo. Em relação a elas tem-se que são boas as leis que promovem o bem comum e orientam as ações no sentido da virtude, desencorajando o vício. Orientar, porém, não equivale a obrigar, pois, para Aristóteles, um dos requisitos do ato virtuoso é a escolha livre da virtude por ela mesma, independente de coação ou interesses.

Os produtos da arte legislativa são considerados justos pois, por definição, as leis visam ao bem comum. Sabe-se, porém, que nem todos os legisladores dominam a arte de legislar com perfeição e que há constituições retas e corrompidas. Mesmo assim, é preferível que uma sociedade seja regida por leis imperfeitas do que largada ao caos da ausência de lei, o que configuraria o fim da comunidade política.

Vê-se que Aristóteles confere grande importância à lei como critério de justiça, embora mantenha a ressalva de que leis podem ser mal formuladas ou servir a fins injustos. Sendo expressa em termos gerais e abstratos, a lei tende a preservar um princípio racional que guarda alguma distância das paixões e dos interesses particulares suscitados em cada situação concreta. Embora o homem prudente permaneça como critério último de correção moral, é forçoso notar que são poucos os homens prudentes no sentido idealizado por Aristóteles. Daí a importância da lei, que obriga o legislador a refletir também em abstrato, já que nem todo homem é capaz de discernir com prudência o que é melhor em cada situação concreta.

A boa ordenação política de uma sociedade, porém, não se constrói apenas considerando o lado dos governantes. É preciso levar em conta também a comunidade destinatária das normas. Em qualquer sociedade haverá aqueles que, tendo cultivado bons hábitos, tenderão naturalmente a fazer o que é certo, submetendo-se às leis justas e aqueles que, não os tendo cultivado, encaminhar-se-ão naturalmente para o vício, caso não haja sansão rigorosa que os coloque no reto caminho. As leis, são feitas, portanto, para serem obedecidas, seja por inclinação, seja por medo da punição.

Os dispositivos legais podem ser avaliados segundo o critério de adequação à concepção de justiça presente em uma dada constituição ou segundo a adequação a um critério básico de justiça ao qual a própria constituição deve estar submetida. Aristóteles sustenta, portanto, uma dimensão natural dos padrões de justiça, ancorada na noção de bem comum e naquilo que é bom para o homem conforme a sua natureza. Existe, pois, uma dicotomia natural-legal no interior da justiça política:

“Da justiça política, parte é natural, parte legal – é natural aquilo que tem em todo lugar a mesma força e não existe em razão das pessoas pensarem isso ou aquilo; legal, aquilo que é originalmente indiferente, mas, uma vez que tenha sido estabelecido, não é indiferente”[1].

Ao dar exemplos de normas gerais ou decretos considerados como justo legal, Aristóteles procura esclarecer que não há nada legalmente justo ou injusto antes que a norma tenho sido convencionada. A força normativa do justo legal é sancionada, portanto, pela autoridade, ao contrário do justo natural, cuja força normativa é revestida de caráter moral, independentemente de ser sancionada ou não por uma autoridade política.

Não se trata de pôr em questão a necessidade da existência de algumas normas cujo fundamento reside na própria autoridade reconhecida como detentora de tal poder, mas de apontar também para a existência de um justo natural que, em alguns casos, deve ser apresentado como padrão.

O justo natural, porém, não é concebido como algo imutável ou absoluto. Para Aristóteles, embora tudo possa mudar, ainda assim há algo justo por natureza,[2] o que equivale a dizer que o justo natural dependerá das circunstâncias e deverá ser avaliado caso a caso. Se, por um lado, não há no direito natural regras abstratas a serem deduzidas a priori, há, por outro lado, uma base ou critério fornecido pelo justo natural que é independente da relatividade da opinião ou da autoridade constituída.

Existe, em suma, o justo natural e o justo legal, devendo este ser estatuído com vistas àquele: o justo legal deve consistir em uma especificação do justo natural através da deliberação do legislador, o que nem sempre ocorre de maneira adequada.

Embora haja situações nas quais o justo e o injusto só podem ser determinados a partir da avaliação do caso concreto, há também algumas ações que, por natureza, são sempre injustas e outras que, no mais das vezes, são justas. As leis devem ser justas e orientar a conduta na direção daquilo que se concebe como justiça. Não basta, porém, apenas a concepção de leis justas; é preciso que se fixe na sociedade o hábito de obedecê-las. De acordo com o exposto, evidencia-se a importância da prudência (phrónesis) ou, mais especificamente ainda, do homem prudente para a avaliação daquilo que é justo em cada caso particular.


[1] ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. V.7.1134b17-22

[2] “Isso [a mutabilidade do justo natural], porém, não é verdadeiro desse modo não qualificado, mas é verdadeiro em um certo sentido. Concede-se que, com os deuses, provavelmente não haja de modo algum mudança, enquanto que conosco há algo que é    justo por natureza e, ainda assim, tudo seja capaz de mudar. Apesar   disso, cabe a distinção entre o que é e o que não é por natureza”. (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco.  V.7.1134b27-31)

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