Paidéia, Pólis e Areté

Paidéia é uma palavra grega cuja riqueza semântica inviabiliza qualquer tradução. Poderíamos traduzi-la por civilização, tradição, literatura, educação, cultura, formação ou todas essas coisas juntas. Esse processo de formação não é possível sem oferecer ao espírito uma imagem do homem tal como ele deve ser.

Os gregos não eram nem individualistas nem coletivistas, mas humanistas, no sentido de apregoarem uma ideia de educação de acordo com a natureza/forma humana ideal. A vida social, artística, intelectual, política era insuflada por essa aspiração. Esse ideal, porém, não era estático, rígido ou definitivo, tendo sido modificado historicamente a cada aprimoramento moral e intelectual dos gregos.

O filólogo alemão e erudito helenista, Werner Jaeger, autor do livro Paidéia: a formação do homem grego, era também um ardoroso humanista e essa sua obra em questão pode ser lida como a exposição do processo histórico e espiritual por meio do qual os gregos elaboraram o seu ideal de humanidade.

Jaeger defende uma unidade de sentido entre os povos ocidentais, de modo tal que estaríamos ligados à antiguidade como àqueles que “há vários milênios traçaram o nosso destino[1]e que são “origem ou fonte espiritual a que sempre, seja qual for o grau de desenvolvimento, se tem de regressar para encontrar orientação.[2]

A palavra paidéia só aparece no século V a.c. mas a história da formação grega ou o processo ao qual o referido conceito faz referência começa no mundo aristocrático da Grécia primitiva, por meio da definição do homem superior ou ideal ao qual aspiram as almas de escol. É, pois, por meio do conceito de arete (excelência, virtude) que se pode acompanhar esse processo.

No período aristocrático, a destreza, a força, o heroísmo, a coragem, a grandeza no estilo de vida, a altivez estavam relacionados à virtude, assim como a honra e a glória enquanto sua contrapartida na forma de reconhecimento social.

 Arete era atributo próprio da nobreza, sendo da mesma raiz semântica e estando diretamente relacionada a senhorio, à posição dominante. Isso se explica porque as sociedades primitivas se formavam pela imposição da força, de modo que aquele que se impunha era o nobre, o senhor. Sendo ele o nobre, o senhor e o forte, aquilo que é positivo para ele e que ele impõe é o que é bom.

O desenvolvimento intelectual e moral dos gregos expressa-se, pois, de certa forma, no desenvolvimento do conceito de arete. Embora Homero ainda sustente o ideal da destreza guerreira como a mais alta medida de valor da personalidade humana, na Odisseia já se percebe uma elevada estima pelas virtudes espirituais, que serão posteriormente destacadas e entronizadas por Sócrates, Platão e Aristóteles. Nos poemas de Hesíodo, por sua vez, destaca-se, em contraposição à arete guerreira da antiga nobreza, a arete do homem simples e trabalhador, que se expressa na posse moderada de bens obtidos com suor e disciplina. A vida sacrificada, monótona e áspera do trabalhador são louvadas por Hesíodo como sendo dotadas de elevada finalidade.

Além dessa nova valoração do trabalho como tesouro espiritual, Hesíodo expressa a exigência de justiça como algo fundamentado na ordem moral do mundo. No poema Erga, expressa-se uma fé apaixonada e religiosa no direito: por mais que haja injustiças no mundo, a justiça seria protegida pelos deuses. Jaeger chega até a fazer uma comparação de Hesíodo com os profetas judeus, tanto pelo apelo a uma justiça transcendente quanto pelo caráter de admoestação, ou seja, pelo caráter de crítica em relação à conduta daqueles que andavam pelos caminhos tortuosos das injustiças.

A ideia de direito aparece no seu poema como uma força reformadora que inaugura uma nova época. O homem não deve, assevera Hesíodo, atender à força e à violência como se dá entre os animais, pois entre eles existe o direito:

“Toma isso em consideração: atende à justiça e não à violência. É o uso que Zeus impõe aos homens. Os peixes, os animais selvagens e os pássaros alados podem devorar-se uns aos outros, porque entre eles não existe o direito. Mas aos homens Zeus concedeu a justiça, o mais alto dos bens[3]

A exaltação da justiça como fundamento da sociedade humana vai se tornando cada vez mais comum e os progressos intelectuais e morais vão transformando paulatinamente a vida pública.

Esse impulso em direção à noção de justiça, que começa a se delinear no horizonte grego, toma corpo na formação da polis e posteriormente na constituição da democracia ateniense. A formação do Estado jurídico, que culmina em Atenas, pressupõe, porém, toda essa evolução de que tratamos. Werner Jaeger chama atenção, inclusive, para a importância do papel dos jônios nesse desenvolvimento do espírito grego, no sentido de “libertar as forças individuais”. Segundo o autor, as características dominantes do novo tipo humano que ali floresceu eram “vivacidade, liberdade, largueza de visão e iniciativa pessoal[4].” Para os Jônios, explica Jaeger, “o Estado nunca é o fim último como em Esparta ou Atenas[5]”.

De toda sorte, a polis é o marco social através do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega; é nela que a cultura grega atinge pela primeira vez a forma clássica. Foi com a polis (palavra da qual deriva o termo posterior política) que apareceu, pela primeira vez, algo próximo àquilo que hoje denominamos Estado. É preciso atentar, porém, para o fato de que a qualificação que Sócrates ou Aristóteles dá da vida social e moral do homem grego como uma vida política envolve uma noção de política e de Estado muito diferente da nossa. Enquanto o conceito moderno de Estado (status no baixo latim) guarda um sentido mais abstrato, a palavra grega polis possui um sentido concreto que exprime o conjunto da existência humana coletiva e a estrutura da existência individual dentro dela.[6]

No livro As origens do pensamento grego, Jean-Pierre Vernant mostra de que modo o fim da realeza micênica e das outras civilizações palacianas, a partir da invasão dórica, promoveu na Grécia uma mutação decisiva que lançou os fundamentos do regime da polis, assegurando certo grau de laicização do pensamento político, possibilitando ao homem grego gozar da situação privilegiada de, pela primeira vez na história, construir instituições políticas livres.

É com o advento da polis – entre os séculos VIII e VII a.c., – que a Grécia toma consciência da sua originalidade e superioridade em relação ao resto do mundo, considerado bárbaro. A polis é a unidade autônoma que, elevando-se acima da multiplicidade das tribos, das fratrias e dos gene, estabelece a nova forma de existência política da civilização grega.

A polis implica, dentre outras coisas, “uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder.[7]Saindo da função ritual para o debate, para a argumentação e para a tentativa de persuasão, a palavra se torna peça fundamental de toda autoridade.

Em estreita imbricação com o logos, a arte política passa inevitavelmente pelo bom exercício da linguagem[8], exercício esse que se dará de maneira aberta, na ágora, de modo tal que  o debate acerca das questões mais importantes da vida social não fica restrito a um grupo exclusivo de detentores do poder, mas alcança o demos todo. Como consequência de tudo isso, têm-se que “a lei da polis já se não impõe pela força de um prestígio pessoal ou religioso[9]”, devendo mostrar sua retidão por meio do logos. O próximo passo nesse processo é a reivindicação de leis escritas.

Tendo sido herdada dos fenícios e modificada por uma transcrição mais precisa dos sons gregos, a escrita tornou-se, desde o século VIII a.c., uma técnica de amplo uso, formando, ao lado da recitação de poemas de Homero e Hesíodo, outro elemento basilar da paidéia grega. Com o nascimento da polis, surge também a reivindicação da redação das leis, como uma forma de materializar a justiça (dike), que se vai transformando na arete por excelência.

O termo dike vem da linguagem processual. Poderia ser traduzido, no seu uso original, por compensação ou processos legais. No tempo descrito por Homero, o direito era designado pelo termo themis (que etimologicamente significa lei). Era por meio dessa lei, cujas normas eram criadas segundo a tradição do direito consuetudinário, que os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam. A exigência de leis escritas é a tentativa de livrar-se do arbítrio e possível arbitrariedade dos nobres, que administravam a justiça conforme a tradição; é a exigência de direito igual para todos, grandes e pequenos, nobres ou simples cidadãos livres.

Dizia-se das partes contenciosas que dão e recebem dike: o lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, recebe dike, enquanto o juiz reparte dike. O significado original do termo seria, pois, algo no sentido de dar a cada um o que lhe é devido: “Enquanto Themis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua vitalidade, dike significa o cumprimento da justiça[10]:

Com o declínio de uma consciência de classe aristocrática a dike começou a ser considerada como algo universal na sociedade, aplicável a todos os cidadãos de igual modo, e garantida pelo próprio Zeus. Os limites dentro dos quais a nova dike era operante eram agora definidos pela lei escrita (nomos), e um termo abstrato dikaiosyne (retidão/justiça), passou a ser usado para descrever a qualidade moral de um homem que observava os limites da lei e por isso era justo (dikaios)[11].

O termo dike concentra, portanto, o anseio de igualdade, de isonomia e eunomia que se constituirá em plataforma da vida pública e ponto central por ocasião da instauração da democracia em Atenas. O processo evolutivo que definiu a essência do Estado constitucional foi o processo por meio do qual o apelo à dike tornou-se cada vez mais frequente e apaixonado. O que Jaeger demonstra no capítulo da Paidéia intitulado “O Estado jurídico e o seu ideal de cidadãoé que da consciência jurídica surge um novo ideal que faz com que a justiça se converta na “nova força formadora do homem, análoga ao ideal guerreiro nos primeiros estágios da cultura aristocrática[12].” Segundo Jaeger, “a exigência de um direito igualitário constitui a mais alta meta para os tempos antigos.[13]

Mesmo assim, explica Jaeger, os graus anteriores da arete não são suprimidos, mas incorporados e subordinados à justiça. Toda a arete está nela contida e os princípios ideais estariam garantidos na polis porque a alma da polis é a lei, corporificação do ideal de justiça: “A polis é o primeiro estágio, depois da educação nobre, na caminhada do ideal humanista para uma educação ético-política geral e humana[14].”

Nessa caminhada do ideal humanista, os poemas políticos de Sólon representam, para o novo ideal da época, a mesma grandeza educadora dos poemas de Homero, Hesíodo e Tirteu. Seus versos eram evocados pelos oradores nos tribunais de justiça e nas assembleias públicas e expressavam “a perfeita interpenetração de toda a produção espiritual grega com a ideia de Estado, numa viva dependência e vinculação de toda a criação espiritual do indivíduo à comunidade[15]”, sendo “o traço de união entre a força educadora implícita na nova ordem jurídica que regia a vida política e a liberdade sem rédeas dos poetas jônicos no pensamento e na palavra[16]”.

Sólon antecedeu a instauração da democracia e, na verdade, apesar de ter sido mais tarde por ela enaltecido, seu intuito foi apenas o de sanear moralmente os fundamentos do antigo estado aristocrático, conduzindo seus atos políticos por uma consciência ética que pairava muito acima da mera vontade de poder ou do interesse partidário.

Exaltando e exemplificando “um novo tipo de vida humana, cuja realização perfeita é independente dos privilégios de sangue e da posse de riquezas”, Sólon unifica vontade prática e política com sentimento religioso; impulso criador individual com energia unificadora da comunidade estatal. Com seu grave e apaixonado sentido de responsabilidade comunitária, aliado a um ideal de legalidade, eunomia e ordem correta intrínseca à vida social, Sólon une comunidade e indivíduo, superando o individualismo ao mesmo tempo em que reconhece um fundamento ético aos direitos da individualidade.16 Os poemas de Sólon exprimem, em suma, o pathos da polis que, segundo Eric Voegelin, “era o pathos de uma participação dinâmica do povo numa cultura que se originou da sociedade aristocrática17


[1] JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. Martins Fontes: São Paulo, 2003 p.6

[2] Idem. p.5

[3] HESÍODO, Erga. Apud. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. p.97

[4] JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. p. 133

[5] Idem

[6] JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego p.560

[7] VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003

[8] Idem

[9] Idem

[10] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. p. 135

[11] PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos – um léxico histórico. Fundação Calouste Gulbenke: Lisboa. p.55

[12] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. p.138

[13] Idem. p.136

[14] Idem. p.147

[15] Idem. p.174

[16] Idem

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on whatsapp
WhatsApp
Share on telegram
Telegram
Share on email
Email

Deixe um comentário

Faça uma doação e seja um apoiador para continuarmos produzindo mais conteúdos como este. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code.

CHAVE PIX
CNPJ: 49.801.549/0001-74



DADOS BANCÁRIOS
Banco: 323 – Mercado Pago
Agência: 0001
Conta: 71721544418