As Visionárias: quatro mulheres e a salvação da filosofia em tempos sombrios (Wolfram Eilenberger)

O livro “As visionárias”, de Wolfram Eilenberger, apresenta-nos a saga de quatro mulheres excepcionais, todas elas inseridas em um contexto histórico complicado, mas com experiências interiores profundamente distintas, marcadas por suas trajetórias biográficas singulares e pelo esforço em interpretá-las à luz da sua genialidade e de sua espontaneidade. Marcadas por guerras e pela ascensão dos regimes totalitários, escreveram como quem busca dar testemunho de si, com o temperamento indômito de quem tenta compreender e se posicionar em um mundo em crise.

Embora seja bastante interessante a ideia de entrecruzar a narração da vida dessas insignes mulheres no recorte temporal de uma das décadas mais sombrias da história, convém aqui estabelecer entre elas algumas diferenças a fim de que não se cometa a injustiça de igualá-las 

A Filosofia se compõe de alguns pilares, de alguns fundamentos sem os quais ela se descaracteriza. A qualificação de “filósofo” não é algo fácil de definir porque a estrutura mesma da Filosofia impõe que essa definição se dê em acordo com o tipo de filosofia que se desenvolve ou que se aceita. Do ponto de vista do idealista, o filósofo será o cultor abstrato da verdade; do ponto de vista do ideólogo materialista, o filósofo esqueceu-se das imposições sociais sobre o pensamento; do ponto de vista do místico, o filósofo apenas tangencia a verdade sem alcançá-la; e assim por diante. O que isso tem a ver com o livro de que ora nos ocupamos? É que cada uma das distintas mulheres nele apresentadas talvez possa ser considerada filósofa para o senso comum ou dentro de uma concepção de filosofia muito peculiar, mas reservamo-nos o direito de não concordar, para todas elas, com o honroso título que, de certa forma, lhes é outorgado no subtítulo da obra: “Quatro mulheres e a salvação da filosofia em tempos sombrios 1933-1943”. 

Tempos sombrios: guerras, experiências totalitárias, descaso com o legado do ocidente que fez com que o ser humano fosse respeitado na sua dignidade própria; crise moral, crise religiosa, crise política. É nesse contexto que Hannah Arendt, Ayn Rand, Simone Beauvoir e Simone Weil tentam conciliar em si e a partir de si uma visão de mundo capaz de confrontar o caos exterior. Nessa tarefa, a condição feminina responde por algo que é peculiar a todas elas: a qualidade sensível do esforço intelectual, no sentido da capacidade para traduzir o concreto para o abstrato e assim colorir as suas teorias com tintas próprias da realidade, algo de que carece boa parte dos que são considerados filósofos.

Hannah Arendt pergunta-se pela essência dos direitos humanos após ter sido relegada à condição de pária e apátrida, desprovida de cidadania, de proteção jurídica. Dentre todas provavelmente a mais estudada e biografada, Arendt é, porém, a que aparece menos no livro de Eilenberger. Pouco ficamos sabendo, por esse livro, da sua relação afetiva com Martin Heidegger ou da sua amizade com Walter Benjamim. Ao optar por focar nos embates de Hannah com o sionismo, o autor abre mão de explorar um terreno fértil de acontecimentos biográficos (inclusive suas prisões e fugas do regime nazista) e de reflexões políticas.

O seu envolvimento com Heidegger, filósofo que se tornou a referência intelectual durante o III Reich, não é algo secundário. O que poderia ter sido apenas um trauma, deu azo a um processo de amadurecimento intelectual que a fez perceber o quão distante do mundo podem estar as ideias filosóficas, mesmo as mais geniais. As especulações metafísicas de Heidegger, embora dotadas de certa pertinência, mostraram-se incongruentes e nefastas do ponto de vista ético e político, uma vez que não evitaram o grande equívoco moral da adesão ao nazismo.

O esforço de Hannah Arendt para descolar a metafísica da política tem muito a ver com essa experiência. Na contramão dos que buscam sustentar metafisicamente suas posições ideológicas, Arendt nota que o pluralismo é algo fundamental e indispensável na vida pública. Sua terminologia conceitual versa mais sobre a experiência política grega efetiva do que sobre a filosofia política tradicional teorizada por grandes metafísicos como Platão. No que diz respeito à sua própria competência como pensadora, ela mesma declinou do título de filósofa, definindo-se tão somente como uma teórica da política. Apesar disso, seu esforço teórico genuíno, corajoso, arguto e, por que não dizer, genial, foi fundamentalmente filosófico, mesmo sem a pretensão de sê-lo.

Se Hannah Arendt foi genial sem ousar dizê-lo, Ayn Rand ousou dizê-lo sem ser. Sua insistência na autoafirmação, na exposição ao mundo de uma autoproclamada originalidade pode ser louvável quando contraposta à debilidade dos que se deixam facilmente consumir pela crítica alheia, pelo olhar reprovador do outro ou pela necessidade de aceitação de grupos, mas a pretensão de louvar o egoísmo e de estabelecê-lo como uma virtude, assim como seu esforço para entronizar a razão humana como última instância de tudo, peca pela ingenuidade filosófica e pelos clichês quase juvenis que fazem de seus textos, mesmo os pretensamente filosóficos, apenas um passatempo para aqueles que estão familiarizados com o verdadeiro esforço intelectual e com o aprofundamento dos temas.

O objetivismo de Rand, que afirma a realidade, a razão e que pretende ser a fundamentação moral do capitalismo não se sustenta minimamente diante das já consagradas conquistas filosóficas no âmbito da superação do empirismo e do racionalismo pela escola fenomenológica, que preconiza a realidade como algo a ser posto em suspensão diante da consciência, instância na qual a essência das coisas mesmas se manifesta. Não podemos, portanto, considerar Ayn Rand como filósofa sem desmerecer a própria filosofia, cuja história precisa ser minimamente considerada por aqueles que pretendem inserir-se nela. Essa é uma ressalva nossa, não do autor de “As visionárias”, mas o livro também explicita a ausência de uma sólida formação filosófica de Rand, seja como acadêmica, seja como autodidata.

Eilenberger traduziu bem no seu livro o cerne no pensamento de Rand: uma   necessidade de autoafirmação incondicional com “dicção elitista nietzscheana.[1]” A despeito dessas observações críticas, é importante que se a valorize como mulher e intelectual. Seu esforço de autossuperação e de autorrealização, embora limitado pelas próprias concepções materialistas que albergava em seu íntimo, apontam para qualidades nobres como a coragem e autonomia.

Vinda de uma família russa que padeceu sob o peso do Estado bolchevique, sua vida e obra acabou se tornando um grito de revolta contra o coletivismo; de fato, uma das coisas mais nefasta no âmbito político. Seu posicionamento firme atinge em cheio a hipocrisia dos falsos humanitários, aqueles que aliciam consciências para causas sociais e filantrópicas, mas sub-repticiamente buscam seus próprios interesses. Aliás, buscar o próprio interesse era para Rand uma virtude e deveria ser feito às claras, em alto e bom som, como o fazem os heróis de seus romances, A nascente e A revolta de atlas.

Essa busca de dar transparência aos vícios que considerava virtude guarda alguma semelhança com as atitudes libertárias e libertinas de Simone Beauvoir que, embora esteja em espectro político antípoda ao de Rand, comunga com ela a ousadia de confrontar sua exigência de autodeterminação com o moralismo de uma sociedade que ambas julgam hipócrita. Não é de estranhar que tanto Rand quanto Beauvoir tenham estado à margem do convencionalismo nas suas relações afetivas, embora apenas Beauvoir tenha elevado a promiscuidade a um estado de arte, fazendo escola e (mal) influenciando gerações.

Pairando acima dessas duas figuras está a encantadora Simone Weil, uma personalidade singular e profunda, cuja vida e obra traduzem a força moral de um espírito quase redimido. Enquanto Beauvoir se ocupava de triângulos amorosos sobrepostos uns aos outros, Weil atormentava-se com sua discordância em relação a alguns dogmas da igreja católica, tentando conciliar seu sentimento profundamente cristão com suas perquirições filosóficas.

Alma desde sempre arrebatada pela piedade e pela compaixão, capaz de verter lágrimas sinceras ao meditar no sofrimento alheio, Weil era um espírito totalmente imbuído de senso de dever moral, atraída como um imã para o bem e a verdade; capaz, consequentemente, de sutilezas filosóficas das quais Beauvoir, Rand e até mesmo a genial Arendt estavam muito distantes. O título de filósofa, portanto, não lhe é apenas condizente, é também insuficiente.

Filósofos normalmente são atravessados por dilemas éticos e morais que exteriorizam em suas teorias e que acabam sendo algo como o reflexo literário de suas indagações profundas. Weil não apenas fez isso como também doou a si mesma nessa odisseia. Seu corpo lânguido, magro, debilitado foi propositadamente exposto às adversidades de uma fábrica para que ela sentisse na própria carne a opressão da qual se esmerava intelectualmente em dissertar (em 1934 se licencia das atividades acadêmicas para trabalhar como operária da linha de montagem da Renault). Sua fragilidade também foi exposta na guerra (em 1936 participa da guerra civil espanhola ao lado dos republicanos) e, tendo na memória e no coração a lembrança da coragem da Virgem de Orleans, também ela se prontificou a ir ao front para resistir contra o nazismo e salvar mais uma vez a França e o ocidente.

Marcada pela dor física, sublimou-a na virtude; desiludida em seus ideais políticos, depurou-os na sua vontade de eternidade; defrontada como os limites da razão diante da complexidade da vida, da morte e de seus mistérios, despertou em si mesma a intuição mística, que elevou a sua inteligência a outro patamar.

Ao ser internada, na Inglaterra, recusou categoricamente qualquer tratamento especial; instada pelos médicos a se alimentar, ingere diminutas porções de mingau e orienta as enfermeiras a enviarem para as crianças da França o leite que lhe era ofertado. No hospital, ocupa-se ainda de seus escritos e estuda o Bhagavad-gita no original, em sânscrito. Aos que a visitaram nos últimos dias, faz preleções sobre a graça e o caminho da luz. Encontra disposição ainda para escrever ao Comando geral da França, expondo sua decepção por não ter sido enviada em missão para morrer ao lado do seu povo. Quando é transferida para um sanatório em Ashford, a médica de plantão pergunta àquela paciente singular quem é ela e o que ela faz da vida. “sou filósofa e me interesso pela humanidade”, responde.

Weil, “o único grande espírito de nosso tempo”, segundo Camus, gênio e santa, segundo T.S.Eliot, morreu aos 34 anos, com tuberculose.


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Este post tem 2 comentários

  1. Marcus Vinicius Vilela de Queiroz

    Maravilhosa sua resenha, foi de capital importância para mim no tocante a Simone Weil me despertando um profundo interesse em conhecer sua obra. Sempre genial Catarina Rochamonte, sempre um prazer estar em contato com o que pensa e escreve. Parabéns mais uma vez,!

    1. Eu que te agradeço, meu caro, pela sua gentileza de sempre e por acompanhar com atenção meu trabalho. Um grande abraço pra você. Bem vindo a esse novo site! Obrigada pelo comentário.

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