A pólis, o “milagre grego” e o surgimento da Filosofia

Não há dúvida de que o momento do surgimento da Filosofia, na Grécia, foi um dos pontos altos na história da humanidade, um momento esplendoroso, cuja grandeza fez com que alguns estudiosos concebessem esse período como uma espécie de “milagre grego.” É o caso de John Burnet que, no seu livro Aurora da filosofia grega[1] (Early Greek Philosophy), defende que o nascente pensamento filosófico na Jônia foi um produto do gênio grego, uma espécie de despertar racional que teria provocado uma ruptura irreconciliável com o mito.

Outra importante tese defendida por Burnet nessa mesma obra é a vinculação direta entre filosofia e ciência, sendo o pensamento dos jônios (filósofos pré-socráticos) uma espécie de matriz, fomentadora da ciência. Nessa perspectiva tem-se, além da dissociação entre filosofia e mito, uma apreensão depreciativa deste último, considerado como uma espécie de ingenuidade ou morosidade intelectual, como um obscuro anteparo primitivo contra o qual incidira a luminosidade da genialidade dos primeiros filósofos.

Jean Burnet considera, pois, um equívoco procurar as origens da ciência jônica nas ideias mitológicas o que, segundo seu ponto de vista, corresponderia a fazer a ciência derivar da mitologia. Tratar-se-ia, antes, nos primeiros filósofos da physis, da adoção de uma nova atitude, de uma investigação baseada na observação e na experimentação, ou seja, um trabalho de base empírica. Esse empirismo é colocado por Burnet como condição mesma para a constituição da filosofia, considerada, por sua vez, como fundamento do saber científico.

Ao associar o pensamento filosófico a um tipo de conhecimento advindo da observação, distante de algo como a revelação ou inspiração poético-religiosa, Burnet fortalece a tese da irrupção de um novo senso de realidade, reforçando, por conseguinte o caráter revolucionário da filosofia grega como berço da ciência ocidental. Sob essa óptica, a filosofia grega seria um conhecimento sem precedentes, que teria surgido quase miraculosamente na Grécia, constituindo-se o nascedouro de toda a atividade científica no ocidente.

O problema dessa interpretação é justamente essa descontinuidade, essa lacuna. Ao desvincular a filosofia do mito, da poesia e da religião, Burnet acaba por desvincular a filosofia da própria cultura na qual ou da qual ela emergiu, uma vez que tal cultura se apresentava nas próprias narrativas míticas tradicionais.

À radicalidade da tese do milagre grego se contrapõe a tese de F.M.Cornford[2] cujos estudos apontam as conexões entre o pensamento filosófico e o mito, mostrando que a descontinuidade com a narrativa mítica foi promovida antes pelos médicos gregos do que pelos filósofos da physis. Segundo Cornford, a filosofia jônica não teria sido um conhecimento oriundo da experiência ordinária do dia-a-dia e da observação, mas sim de uma instância espiritual, da profundidade da alma, de uma tradição dos profetas, poetas e sábios que povoavam a Grécia.

A medicina grega, por sua vez, teria sido esse conhecimento baseado na experiência e na experimentação, um conhecimento distante daquele de caráter revelado, tendo Hipócrates, inclusive, criticado a aplicação à medicina empírica dos postulados a priori, próprios da filosofia natural. Diferentemente desta, a medicina explorava a natureza do homem de baixo para cima, e se constituiu como saber a partir da reflexão sobre a maneira como o médico de fato procedia, datando do período em que determinados médicos se dispuseram a desvincular a sua arte dos antecedentes mágicos.

Embora esse mesmo desejo de se separar do aparato mitológico tenha marcado os filósofos de Mileto, estes recorreram, para tanto, a postulados abstratos acerca do estado originário das coisas, enquanto os médicos seguiram o caminho oposto, partindo de uma atenção constantemente fixada em casos individuais para, em seguida, fazer suas generalizações.  

A tese de Cornford vincula os primeiros filósofos às figuras do profeta, do poeta e do sábio, por conseguinte, à figura do xamã que, no oriente, fundia em si essas três funções. Em um dos capítulos de sua obra principium sapientiae, o autor estabelece sua tese do filósofo como herdeiro do poeta vidente, embora no capítulo seguinte apresente as diferenças e o conflito entre ambos.

Havia, tanto no sábio-poeta-vidente da antiguidade quanto nos filósofos originários, uma inquietação interna que tentava desbravar os caminhos do bem e da virtude. Esse caminho era ladeado de crenças transcendentais e verdades divinamente inspiradas (a exemplo do poema de Parmênides). O filósofo, portanto, teria sua ancestralidade arraigada nos dons divinos do sábio-vidente-poeta.

A despeito dessa herança, o conflito de perspectivas evidencia-se, na medida em que os filósofos naturais buscavam desvendar o porvir dos fenômenos da natureza, baseando-se na compreensão e análise dos próprios fenômenos, enquanto os profetas e videntes ainda interpretavam os fenômenos naturais como manifestação do humor dos deuses.

Uma vez que se evidencia a possibilidade de explicar/interpretar os fenômenos sem a intervenção das divindades, os profetas vão perdendo o seu lugar como consultores da sociedade. Disso resultou, dentre outras coisas, as acusações de ateísmo que muitas vezes incidiram sobre os filósofos.

Nesse conflito, o papel de Sócrates é profundo e sutil: em meio aos vários sábios, profetas, magos, supostamente dotados de conhecimentos divinatórios, ele recusa a presunção de que é dotado de algum saber a ser revelado. Sua máxima “sei que nada sei” estabelece uma distinção entre o profeta-vidente dotado de conhecimento privilegiado e o filósofo, dotado de uma lucidez acerca da própria ignorância, que o impele sempre a buscar a verdade.

Embora derivem de uma mesma gênese, o profeta, o poeta e o filósofo acabam se distinguindo e afirmando, cada um, sua identidade e inspiração própria. O profeta é inspirado pelos deuses e o poeta pelas musas, enquanto o filósofo é impulsionado pelo seu amor pela verdade. Como se vê, Cornford teve êxito em relacionar os três tipos: o filósofo/sábio, o vidente e o poeta, evidenciando suas particularidades sem, contudo, eliminar a unidade que lhes identifica a origem.

O historiador e antropólogo francês, Jean Pierre Vernant[3], reconhece a importância do trabalho de Cornford para reestabelecer o fio da continuidade histórica entre a filosofia e o pensamento religioso que a tinha precedido. Assim como Cornford, Vernant também se insurge contra a corrente de historiadores de filosofia, representada por John Burnet, que considera a filosofia como um começo absoluto que marcaria uma descontinuidade radical na história. Assim sendo, Vernant toma a obra de Cornford como ponto de partida para suas próprias investigações acerca do início da filosofia grega.

Segundo Vernant, Cornford teria estabelecido o liame entre o pensamento religioso e o começo do conhecimento racional, ligando a primeira filosofia grega às suas origens míticas. Da obra de Cornford, Vernant destaca, por exemplo, sua demonstração de que a física jônica quase nada tinha em comum com aquilo que hoje designamos com essa palavra. Ao invés de um conhecimento que se desenvolve por observação da natureza, acompanhada de experimentação, a filosofia da physis configurou-se como uma espécie de transposição do sistema de representações elaboradas pelo mito, como uma apresentação do mito em uma forma mais laicizada, em um plano de pensamento mais abstrato. As cosmologias dos filósofos teriam apenas racionalizado os mitos cosmogônicos.   

Embora conceda a Cornford o mérito de ter firmado a filiação da filosofia ao mito, Vernant se propõe ir além, explicando com mais pormenor as condições históricas específicas que possibilitaram o surgimento da filosofia. Cumpre notar que Vernant não é um especialista em Filosofia ou história da Filosofia, mas um historiador e antropólogo. O método por ele utilizado é o da “psicologia histórica”, que mistura elementos do método sociológico, psicológico e antropológico com a investigação histórica propriamente dita. É com base nesse método que Vernant apresentará a sua tese de que “a filosofia é filha da polis.”

Essa tese, apresentada ligeiramente no artigo “Do mito à razão” e desenvolvida no livro As origens do pensamento grego, acompanha-se da explicação do modo como a razão, embora inicialmente atrelada ao mito, desvincula-se dele e o ultrapassa, constituindo a filosofia. Segundo Vernant, esse processo foi possível devido às transformações sociais e políticas ocorridas na Grécia, cuja culminância foi o surgimento da polis e da democracia ateniense.

Dentre as transformações que tiveram um potencial libertador para o pensamento, Vernant cita a invenção da moeda, do calendário, da escrita alfabética, as navegações, o comércio, a ausência de uma monarquia de tipo oriental, etc. A grande virada, porém, foi justamente o início da reflexão sobre a vida humana tal como ela se apresentava na polis.

O declínio do mito, segundo Vernant, inicia quando a ordem humana começa a ser discutida, ou, em outras palavras, quando a ordem social deixa de ser pensada como sendo uma ordem sacral e natural, portanto imutável. A originalidade dos gregos estaria tanto na ordem social configurada quanto na reflexão que se fez em torno dela. A derrota da realeza micênica e o posterior advento da polis teria repercutido de tal modo na visão de mundo grega a ponto de fazer com que a razão se expressasse, constituísse e formasse primeiramente no plano político, sendo a filosofia uma consequência da laicização do pensamento tornada possível pelo novo tipo de organização da vida social.

A filosofia grega estaria, portanto, segundo Vernant, profundamente enraizada no novo pensamento político, tendo inclusive tirado dele parte do seu vocabulário e de suas preocupações principais. Os filósofos da physis teriam projetado sobre o mundo físico a concepção de lei e ordem que passara a vigorar na polis. A própria visão unitária da natureza seria a projeção, no universo, dessa nova visão.


[1] BURNET, J. O Despertar da Filosofia Grega. São Paulo: Editora Siciliano, 1994

[2] CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

[3] VERNANT, Jean Pierre. As origens do pensamento grego. RJ: Bertrand Brasil, 2000

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