Esquerda e Direita: Perspectivas para a liberdade (ROTHBARD.H. Murray)

Em 1965 Murray Rothbard fundou a revista Left and Right, defendendo no seu primeiro editorial “Esquerda e Direita, perspectivas para a liberdade” a tese de que a identificação dos libertários com o espectro político da direita era equivocado, incompatível com a trajetória das lutas liberais, inseridas, segundo ele, na tradição radical da esperança e da liberdade, da luta contra o status quo, contra a velha ordem que “quer tenha assumido a forma do feudalismo ou do despotismo oriental, caracterizou-se pela tirania, pela exploração, pela estagnação, pelas castas estanques, pela desesperança e pela fome para a maior parte do povo[1].

Para Rothbard, essa velha ordem foi e ainda é “o grande e poderoso inimigo da liberdade[2]”, tendo sido fortemente abalada pelo liberalismo que “trouxe para o Ocidente não apenas a liberdade, a perspectiva da paz e os padrões de vida ascendentes de uma sociedade industrial, mas, talvez, acima de tudo, a esperança num progresso cada vez maior, que tirou a maior parte da humanidade de sua imemorial fossa de estagnação e desesperança[3]

No texto em questão, Rothbard concebe o conservantismo sob o pano de fundo do Ancien régime. Diante do fenômeno revolucionário, diz ele, a Europa dividiu-se em duas grandes ideologias políticas, de um lado o liberalismo, surgido “da esperança, do radicalismo, da liberdade, da Revolução Industrial, do progresso, da humanidade[4]” e de outro lado o conservantismo, “o partido da reação, o partido que almejava restaurar a hierarquia, o estatismo, a servidão, a exploração de classe próprio da velha ordem[5].

É importante destacar que se trata aqui de um olhar pouco nuançado, que identifica esse espectro político com um mero reacionarismo, sem considerar, por exemplo, a inflexão ou originalidade do conservadorismo moderno que, sob a influência de Edmund Burke, dialoga bem como o liberalismo e que, na verdade, insere-se na própria tradição do liberalismo clássico, mais influenciado pela tradição clássica, pelo empirismo britânico e pelo iluminismo escocês que pelo iluminismo francês e seu racionalismo radical que acabou levando a Revolução francesa para o período nefasto do Terror jacobino.

Identificando a direita com esse conservadorismo reacionário, Rothbard afirma que o lugar dos libertários, se fosse considerado seus princípios e suas históricas lutas, deveria ser a esquerda, a oposição ao status quo, aos privilégios e despotismos que privavam a massa de liberdade e participação política efetiva. Ocorre que, após as revoluções, e ao longo de todo o século XIX, houve um declínio do liberalismo, cujas causas teriam sido, segundo o autor, o “abandono da teoria dos direitos naturais e da lei maior em favor do utilitarismo[6]” e a influência do evolucionismo e do darwinismo social.[7] A partir daí, o liberalismo perde sua força e seu protagonismo como movimento de esperança no mundo ocidental e o socialismo insere-se nessa brecha na “luta contra o Estado e contra os remanescentes ainda intactos da Velha Ordem.[7]

Tanto os conservadores quanto os socialistas acostaram-se ao Estado, acomodando-se ao status quo em favor dos próprios interesses. Os socialistas, apesar de defenderem o fim do Estado após a revolução, tornaram-se presa de um paradoxo ao rejeitarem a sociedade privada: “se o Estado deve desaparecer após a revolução (de imediato, para Bakunin, por um definhamento gradual, segundo Marx) como poderá então o coletivo gerir sua propriedade sem que ele próprio se transforme num gigantesco Estado de fato, ainda que não nominalmente[8]”?

Diante da insolúvel aporia, a maioria dos socialistas, explica Rothbard, abandonou as ideias de definhamento do Estado, conciliando-se com ele, com o status quo e com toda a sua aparelhagem. Já o conservadorismo converteu-se, segundo ele, em “um regime de estatismo caracterizado pela cessão pelo Estado de privilégios de monopólio (sob formas diretas e indiretas) a capitalistas protegidos e a proprietários de terras quase feudais[9]”. Se levarmos em consideração os extremos dessas duas perspectivas, da esquerda e da direita, teremos o comunismo e o fascismo como movimento semelhantes no caráter antiliberal, estatista e coletivista, mas diferentes em relação ao conteúdo socioeconômico:

“O comunismo constituiu um movimento revolucionário genuíno, que desalojou e destronou de modo implacável as elites dominantes estabelecidas, ao passo que o fascismo, ao contrário, consolidou no poder as classes dominantes tradicionais. O fascismo foi, portanto, um movimento contrarrevolucionário, que cristalizou um conjunto de privilégios de monopólio sobre a sociedade; em suma, representou a apoteose do moderno capitalismo monopolista de Estado e foi por essa razões que se provou tão atraente aos grandes interesses empresariais do Ocidente.”[10]

Ao buscar os responsáveis pelo recuo do livre mercado nos Estados Unidos, Rothbard foge à interpretação mais comum e o atribui não a militantes socialistas, mas ao “interesse dos grandes empresários na proteção estatal contra o laissez-faire[11]”. Nessa linha de raciocínio segue a sua interpretação sobre o New Deal, descrito por ele como um fascismo à americana:

Esse programa, com sua concessão de privilégios a vários grandes grupos empresariais no auge da empreitada coletivista não foi, em nenhum sentido, um socialismo ou um esquerdismo; nada havia nele que lembrasse de longe o igualitário ou o proletário. Não, o parentesco desse coletivismo florescente não era de modo algum com o socialismo-comunismo; era, sim, com o fascismo […] parentesco que muitos grandes empresários da década de 1920 expressaram abertamente em seu anseio pela substituição de um sistema de quase laissez faire por um coletivismo que teriam condições de controlar. […] Quando o New Deal é despido de sua camuflagem progressista, social-reformista, o que fica é a realidade do novo modelo fascista de sistema de capitalismo de Estado concentrado e servidão industrial[12].”

Para Rothbard, portanto, o New Deal foi uma extensão da teia de privilégios concedidos pelo Estado: a estabilização e a perpetuação do poder econômico dos grandes grupos empresariais, não em favor do bem público, mas em detrimento dele. O bem comum, afinal, na maioria das vezes, é apenas pretexto. O monopólio, explica o economista, não pode resultar de operações do mercado livre, que rapidamente o dissolve na competição aberta. Na verdade, é o Estado que o cria e mantém[13].

A intervenção do governo, portanto, não significa necessariamente esquerdismo nem oposição aos interesses da grande empresa. Determinadas normas baixadas sob setores como seguros, bancos, exportação e área empresarial de modo geral muitas vezes são concebidas e propostas por grandes empresários, obviamente em seus próprios interesses, consolidando subsídios e estabilizando a concessão de privilégios. É a nefasta síntese de negócios e política por meio da qual a grande empresa granjeia apoio dos vários órgãos reguladores e do executivo[14] enquanto a pequena empresa é sufocada e impedida de se desenvolver.

Apesar do sombrio diagnóstico, bastante adaptável e pertinente, diga-se de passagem, à realidade brasileira atual, Murray Rothbard é um otimista e defende o otimismo como característica distintiva do libertário:

“O panorama ilumina-se de imediato quando nos damos conta de que o requisito indispensável à civilização moderna – a derrocada da velha ordem – foi levado à cabo pela ação libertária das massas, irrompendo no Ocidente em revoluções tão grandiosas quanto a francesa e a norte americana, provocando as glórias da Revolução Industrial e os avanços da liberdade, da mobilidade e os padrões de vida ascendentes que até hoje conservamos. Apesar das oscilações reacionárias no sentido de retorno ao estatismo, o mundo mantem-se num plano muito superior ao do mundo passado. Quando consideramos também que, de uma maneira ou de outra, a Velha Ordem do despotismo, do feudalismo, da teocracia, e do militarismo dominou todas as civilizações humanas até a civilização ocidental do século XVIII, o otimismo quanto ao que o homem conquistou e pode conquistar deve tornar-se ainda maior[15]”.


[1] ROTHBARD.H. Murray Esquerda e Direita: Perspectivas para a liberdade – São Paulo: LVM Editora, 2019, p.37

[2] Idem. p.38

[3] Idem.p. 40

[4] Idem.p.42

[5] Idem. p.42

[6] Idem. p.44

[7] Idem. p.44

[8] Idem. p.50

[9] Idem. p.54

[10] Idem. p.60

[11] Idem. p.61-62

[12] Idem. p. 20

[13] Idem. p. 66

[14] Idem. p. 71

[15] Idem.p.88

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