Liberdade e Ordem Espontânea no pensamento de F.Hayek

1 – As duas fontes do liberalismo

Ao longo do século XVII, XVIII e XIX consolidava-se no ocidente uma tradição política que visava, dentre outras coisas, o primado da lei e da ordem sobre o autoritarismo e o arbítrio, a garantia das liberdades individuais, a separação entre os poderes, o respeito às instituições, a igualdade perante a lei, a neutralidade do Estado (separação entre esfera civil e religiosa), etc.

 Essa importante força intelectual e política tem a particularidade de se originar de duas fontes distintas ou duas visões de mundo que, ainda hoje, coexistem e se misturam, confundindo um pouco o debate público que, muitas vezes, não incide sobre os problemas reais, que permanecem ocultos pela ausência de prévia análise linguística e genealógica dos conceitos que estão em jogo.

Estando de acordo quanto à liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa e, por isso mesmo, fazendo frente a visões de mundo reacionárias, as duas correntes do liberalismo divergiam no quesito de respeito à tradição, às instituições e à própria experiência humana ou compreensão do que seja mais eminentemente humano. Uma das correntes liberais assentava-se em uma tradição filosófica que superdimensionava a capacidade racional e outra em uma tradição filosófica que lhe enxergava os limites. Falamos aqui do liberalismo continental, que se vinculou ao racionalismo cartesiano e ao iluminismo francês, culminando na revolução francesa e do liberalismo evolutivo, que se vinculou ao iluminismo escocês, ao empirismo britânico e que teve na revolução americana um de seus grandes momentos.

O primeiro pilar do liberalismo britânico é Jonh Locke, mas o próprio Locke, com o seu Segundo tratado do governo civil (1689), de certo modo, apenas tornou mais palatável ao leitor moderno as fórmulas clássicas do ideal de liberdade sob o império da lei. De fato, tais ideias remetem à Grécia dos séculos V/IV a.C, à concepção de direito natural e limitação dos poderes do Estado desenvolvida pelos filósofos estoicos, aos ideais defendidos pelos romanos Cícero, Tito Lívio e Marco Aurélio e aos autores medievais e da escolástica tardia sistematizados por Tomás de Aquino e posteriormente convertidos em um sistema de política essencialmente liberal pelos jesuítas espanhóis da Escola de Salamanca, considerada por muitos estudiosos como precursora intelectual da Escola Austríaca de Economia.

Pois bem, essa tradição liberal britânica difere, em muitos aspectos, da outra tradição que esteve na origem dos movimentos libertários dos países continentais em que vigia o absolutismo. Destaca-se da tradição continental, bastante influenciada pelos filósofos do iluminismo francês como Rousseau e Voltaire, além do aspecto livre-pensador, uma forte tendência anticlerical, antirreligiosa e antitradicionalista, tal como se vê expressa na famosa frase do livro Extrait des sentiments de Jean Meslier, editado por Voltaire: “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre.

Enquanto o iluminismo escocês travava significativo debate acerca da soberania da razão para estabelecer as regras morais e sociais, possibilitando a apreensão dos aspectos não racionais inerentes à estrutura humana e, consequentemente, à estrutura social, o iluminismo francês endeusava a razão. Trabalhamos, pois, com a hipótese de que as referidas distinções entre o liberalismo britânico e o liberalismo continental remetem à influência do empirismo ou naturalismo na primeira tradição (principalmente da figura de David Hume) e a influência do racionalismo cartesiano na segunda.

No interior dessa diferenciação de tendências liberais (que se tornou mais nítida a partir da crítica de Edmund Burke ao racionalismo iluminista) analisaremos o vínculo da Escola Austríaca de Economia com a primeira tradição a partir da compreensão que os grandes expoentes do iluminismo escocês tiveram da ordem social.

 De fato, uma das principais contribuições metodológicas do iluminismo escocês para as ciências humanas e que influenciou o trabalho de expoentes da Escola Austríaca de economia, principalmente Friedrich Hayek, foi a noção de ordem espontânea.

2 –  A ordem espontânea da sociedade

A noção de ordem espontânea ou dos resultados não antecipáveis das ações individuais sugere que estruturas sociais complexas como economia, instituições políticas ou a própria moralidade não derivam de uma inteligência unificadora estritamente racional, mas de um conjunto de ações individuais que interagem entre si.

Se as ações humanas não são antecipáveis, seus resultados são imprevisíveis e por isso não faz sentido um planejamento social amplo. Mais importante do que saber que a complexidade do tecido social não se origina desse planejamento é deduzir que um tal planejamento prejudica a ordem social espontânea, pondo em risco toda a sociedade.

Todo fenômeno que envolve interações humanas é extremamente complexo e as instituições se originam de tais interações e não da ideação de um sujeito isolado ou de um grupo de intelectuais iluminados. As instituições funcionam porque milhares de pessoas, ao longo de séculos, pensaram sobre elas, observando e reformando seus defeitos, gerando uma sabedoria supra-racional da espécie que é superior, do ponto de vista da decisão política, à racionalidade de um indivíduo ou grupo de indivíduos.

A obra de F. Hayek “A arrogância fatal: os erros do socialismo” é toda perpassada pela noção de ordem espontânea e pela exposição reiterada de que tal ordem “pode ultrapassar de longe os planos conscientemente idealizados pelos homens.[1]Levar em consideração esse dinamismo espontâneo, reconhecer a sua superioridade em relação ao planejamento possível à mente de um indivíduo ou de um grupo qualquer é o que Hayek entende por uso prudente da razão, contraposto por ele à arrogância do que chama de razão construtivista. A epistemologia à qual Hayek se vincula é, segundo ele mesmo esclarece, uma epistemologia evolucionária, “uma teoria do conhecimento que compreende a razão e seus produtos como desenvolvimentos evolutivos.[2]O economista chama ainda atenção para a importância das normas na consolidação da ordem espontânea. A evolução da civilização teria se dado pela seleção de determinadas condutas que se perpetuaram na forma de instituições e tradições nas quais estamos inseridos e que formam um todo cujo funcionamento é bem mais complexo do que o funcionamento das coisas que nós mesmos fabricamos.

A lei, no sentido de normas abstratas, seria pré-requisito para a evolução de uma ordem de cooperação espontânea cada vez mais complexa que lança suas raízes na segurança garantida aos indivíduos através dessas normas. A prosperidade estaria bem mais ligada à coordenação espontânea dos esforços individuais do que às políticas governamentais deliberadas. Não obstante, esses valores e as instituições centrais da ordem espontânea passam a ser questionados principalmente entre os pensadores franceses, no contexto do racionalismo cientificista reinante.

 Hayek trabalha, portanto, com uma noção de estrutura auto-organizadora que não está limitada à economia, mas serve como instrumento de análise e compreensão de “todas as ordens complexas que existiam até então como milagres que só poderiam ser produzidos por uma versão sobre-humana do que o homem conhecia como consciência.[3]”. A evolução cultural e moral, na forma de uma ordem espontânea, não seria nem o mero resultado de um instinto nem um planejamento da razão, mas algo entre o instinto e a razão depositado na tradição que “por sua vez não se originou de uma capacidade de interpretar racionalmente os fatos observados, mas do modo costumeiro de responder.[4]

Levando em conta que foi pela ordem espontânea que as coisas evoluíram é também por ela que devem continuar a evoluir, sendo, portanto, prejudicial a esse processo a arrogância racionalista que pretende tomar as rédeas e o controle do desenvolvimento futuro logo agora que as coisas se tornaram tão complexas. Sendo assim, todas as doutrinas modernas que compartilham dessa pretensão são englobadas na definição de “racionalismo construtivista”, cuja crítica pressupõe a tese, defendida por Hayek, de um desenvolvimento paralelo da consciência humana e da civilização. Ou seja, nem a evolução cultural seria efeito da ação planejada do homem que pensa nem o homem que pensa seria efeito dessa evolução, mas ambos teriam se desenvolvido e evoluído paralelamente.

3. Dois conceitos de liberdade

Na tradição clássica britânica, a liberdade é definida em termos de segurança do indivíduo e da propriedade e limitação dos poderes do Estado, ou seja, como proteção legal contra qualquer tentativa de coação arbitrária. Na tradição continental, a liberdade está mais próxima de uma demanda de autodeterminação de cada grupo em relação à sua forma de governo, além de estar vinculada a um forte racionalismo tal como se vê expresso na máxima de Espinosa de que “o homem livre é aquele que vive apenas conforme os ditames da razão.”

É em Rousseau que Hayek vai identificar “a origem principal da arrogância fatal do moderno racionalismo intelectual que promete nos conduzir de volta ao paraíso.[5]” Vimos que, para o economista austríaco, a evolução social está relacionada às condutas selecionadas e perpetuadas na forma de instituições, leis e tradições, ou seja, está relacionada justamente às contrições supostamente artificiais que acorrentam o “bom selvagem” que Rousseau quer libertar.

Com essa “permissão intelectual de se desfazer das restrições culturais”[6], o pensador francês “engendra um conceito de liberdade que se tornou o maior obstáculo à sua consecução.[7]Forja-se, assim, um raso conceito de liberdade, a liberdade dos intelectuais progressistas, que beira a libertinagem, uma vez que considera como um melhor guia de conduta não a tradição ou a razão, mas o instinto animal primitivo.

Essa falsa noção de liberdade, que em verdade trai a tradição ética ocidental baseada no autodomínio, no controle dos desejos, nas instituições e nas leis, acaba sendo um ataque aos próprios fundamentos da liberdade, como a propriedade individual, que passa a ser vista como suspeita e como limitadora.

Trata-se, portanto, de duas concepções distintas de liberdade que ainda hoje expõem visões de mundo fundamentalmente diferentes. De um lado, tem-se a consciência de que, consistindo a liberdade no direito que cada indivíduo possui de perseguir seus objetivos distintos e específicos, essa liberdade jamais se poderia dar de forma irrestrita, já que uma liberdade sem limites incidiria inevitavelmente sobre a liberdade alheia, sendo, pois, necessário para o próprio exercício da liberdade a designação de campos dentro dos quais cada um poderá dispor de recursos para seus próprios fins e de “normas abstratas que impedem a coerção arbitrária ou discriminatória por alguns ou de alguns, e que invada a livre esfera do outro.[8] 

De outro lado, tem-se os intelectuais que, de Rousseau a Foucault, passando por Habermas “acreditam que a alienação predomina em qualquer sistema no qual uma ordem é imposta aos indivíduos sem seu consentimento consciente.[9]Na verdade, trata-se de um conceito arcaico de libertação que “em sua exigência de se libertar de morais tradicionais” apenas requer a libertação do “ônus do trabalho disciplinado, responsabilidade, aceitação de riscos, poupança, honestidade, cumprimento de promessas, etc.[10]

Segundo Hayek, “os defensores de tal libertação destruiriam o fundamento da liberdade e permitiriam que os homens agissem de maneira a acabar irreparavelmente com as condições que tornam a civilização possível. Um exemplo é a chamada ‘teologia da libertação’, principalmente na Igreja Católica Romana da América do Sul.[11]

4.  A “ladainda de erros” e a arrogância socialista

A arrogância fatal, criticada por Hayek, reflete-se tanto no desprezo da Sociologia pelas “disciplinas consagradas que há muito tempo estudam estruturas crescidas como o direito, a linguagem e o mercado[12]” quanto nas tendências filosóficas racionalistas da modernidade. Racionalismo (negação de que convicções fundadas em outra coisa que não o raciocínio dedutivo ou indutivo), empirismo (limitação do conhecimento ao processo experimental), positivismo (visão segundo a qual todo conhecimento verdadeiro é científico) e utilitarismo (noção de que prazer e dor são os critérios que determinam a justeza da ação do indivíduo) perfazem a “ladainha de erros” que Hayek tenta desconstruir ao apontar seus pressupostos, sobretudo a ausência de percepção acerca da existência de limites ao nosso conhecimento ou à razão em algumas áreas.

As pressuposições equivocadas de que “aquilo que não é cientificamente provado ou não é plenamente compreendido ou não tem um propósito plenamente especificado, ou que possui alguns efeitos desconhecidos, é desarrazoado[13]” seriam, segundo Hayek, “particularmente convenientes ao racionalismo construtivista e ao pensamento socialista[14]“, enfoques esses que  “decorrem de uma interpretação mecanicista ou fisicalista da ordem espontânea da cooperação humana, ou seja, da concepção da ordem como aquela organização e aquele controle que poderíamos exercer sobre um grupo se tivéssemos acesso a todos os fatos conhecidos aos seus membros[15]

Ocorre, porém, que esse conhecimento não é possível e não é planejando artificialmente uma nova ordem racional que a humanidade conseguirá algo melhor do que o que temos agora. A arrogância socialista tem por objetivo “nada menos que empreender um projeto novo e abrangente de nossa moral, da lei, da linguagem tradicionais[16] por meio dos seus “conselhos para a perfeição”. No entanto, “existe um sistema moral altamente evoluído, bastante sofisticado em nossa ordem espontânea ao lado da primitiva teoria da racionalidade e da ciência defendida pelo construtivismo, cientificismo, positivismo, hedonismo e socialismo.[17]

Percebe-se, portanto, que, em suas considerações sobre a moral, Hayek segue a trilha de David Hume, para quem a tradição e o hábito ou o hábito da tradição têm mais força do que as conclusões racionais como móbil de condutas. Hayek lembra, inclusive, que não é apenas Hume que considera que as normas morais não são conclusões da nossa razão, mas que essa é uma tendência seguida por uma longa série de estudiosos da evolução cultural, desde os gramáticos e linguistas clássicos romanos, passando por Herder, Giambattista Vico […] e os historiadores do direito alemão.[18]

Em toda ordem espontânea há um enorme espaço de indeterminação, predominando as consequências não premeditadas. No mercado, como sabemos, a “distribuição de recursos é efetuada por um processo impessoal no qual os indivíduos, agindo em função de seus próprios fins (estes também muitas vezes bastante vagos), literalmente não conhecem e não podem conhecer qual será o resultado geral de suas interações[19].” Trata-se, portanto, de um processo auto-ordenador  desprovido de atributos morais que pode, inclusive, gerar aversão, induzindo à invenção de uma moral que tenta controlar a evolução sob o pretexto de torná-la justa.

Essa vontade de intervenção seria, para Hayek, arrogante e ingênua, mas, sobretudo, prejudicial ao processo evolucionário em curso.

A complexidade da civilização, a exuberância da tradição, a produtividade do comércio estão ligadas à exuberância, à potência e à riqueza dos mundos subjetivos de cada indivíduo, que se entrecruzam em suas diversidades de propósitos, satisfazendo de modo mais eficaz as necessidades em geral do que o fariam a “homogeneidade, a unanimidade e o controle.[20] É portanto ao “desenvolvimento do espírito individualista” que se devem “a divisão das especializações, o conhecimento e o trabalho, nos quais se baseia a civilização avançada[21].”

5. O problema da Justiça social

O adjetivo “social” é, para Hayek, confuso e perigoso, já que seus sentidos concreto e normativo confundem-se imperceptivelmente, indo da descrição à prescrição, tornando-se assim “uma espécie de palavra de ordem para a moral racionalista visando substituir a moral tradicional, que agora cada vez mais suplanta a palavra ‘bom’ como designação do que é moralmente certo[22]”.

Para ilustrar o modo como o adjetivo social “destrói totalmente o significado de qualquer palavra que qualifica[23]”, Hayek escolhe a expressão “justiça social”. Como, para ele, a justiça distributiva que reduziria ou acabaria com as diferenças de renda é incompatível com a ordem de mercado competitiva que assegura a própria manutenção da sociedade, então o termo “deveria em realidade ser chamado ´anti-social´”[24].

Sob pretexto de segurança e justiça social pode-se atingir o ser humano em um aspecto que lhe é fundamental: a inventividade. A ordem de mercado é justamente aquela que assegura ao homem o exercício de sua criatividade e de sua potência na busca constante de adaptação ao desconhecido. Somente a ordem de mercado possibilitaria aos indivíduos fazerem uso de um conhecimento essencialmente disperso e que “não pode ser coligido e canalizado para uma autoridade encarregada da tarefa de criar deliberadamente a ordem[25]

Na ordem espontânea de cooperação humana, a alocação de recursos não se dá segundo critérios de justiça. A exigência de que cada indivíduo receba o que moralmente merece seria inócua, estando a humanidade dividida “em dois grupos hostis por promessas que não têm um conteúdo realizável[26]”, sendo que aqueles alinhados à ética anticapitalista “representam uma grande ameaça à civilização”, pois “condenam as instituições geradoras de riqueza às quais elas próprias devem sua existência[27]

6. A dispersão do conhecimento

O ensaio de Friedrich Hayek, O Uso do Conhecimento na Sociedade, foi inicialmente publicado na American Economic Review em setembro de 1945 e posteriormente, em 1948, republicado no livro Individualism and Economic Order. Nesse texto, Hayek explicará porque as decisões voluntárias tomadas no mercado em lugares e circunstâncias individuais e específicas são mais eficientes do que decisões tomadas por um órgão planejador central.

A explicação fundamenta-se no fato de que os ‘dados’ totais da sociedade a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos não podem ser dados sem recobrirem “pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuído por diversos indivíduos independentes”; conhecimento esse cuja utilização será otimizada não pelo mero levantamento de estatísticas, mas pelos indícios fornecidos no mercado pelo sistema de preços.

 Para Hayek, o problema econômico da sociedade não é simplesmente o da alocação de recursos que já estariam dados, mas o da “utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade” ou, em outras palavras, “de qual é o melhor meio de utilizar o conhecimento que está inicialmente disperso entre várias pessoas independentes.”

Há um corpo de conhecimento disperso e desorganizado extremamente importante para a sociedade mas que, não sendo um conhecimento do tipo científico, “não pode ser transposto para dados estatísticos e que, por isso, não pode ser colocado à disposição de uma autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos”.

São os indivíduos que possuem informações a respeito desse tipo de conhecimento prático, pois estão de posse de  “informações únicas sobre que tipos de usos benéficos podem ser feitos com certos recursos; usos estes que só acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas mãos desse indivíduo ou for tomada com sua cooperação ativa”.

É quase tão importante para a sociedade fazer uso desse tipo de conhecimento que depende das circunstâncias de um momento fugidio quanto fazer uso das últimas descobertas científicas. O menosprezo do qual esse conhecimento prático é alvo deve-se em grande medida, segundo Hayek,  “à pouca importância dada à questão da incerteza em si mesma”. Mas é justamente a incerteza que inviabiliza o cálculo, e a inviabilidade do cálculo é o que torna inviável o planejamento.

Convém então estabelecer uma forma mais eficaz de uso dos recursos disponíveis do que deixar tal uso na dependência do conhecimento de um órgão planejador central. Essa forma mais eficaz é a própria concorrência ou o dinamismo do mercado nas suas implicações, dentre as quais o sistema de preços que, junto ao ordenamento social que dele decorre, estabiliza momentaneamente a economia até que uma nova mudança se faça sentir e que uma nova decisão econômica precise ser tomada.

Hayek explica que “os problemas econômicos surgem sempre e exclusivamente em decorrência de mudanças. Enquanto as coisas continuam exatamente como estavam antes […] não surgirão novos problemas que exijam soluções, não havendo, portanto, necessidade de que se elabore um novo planejamento”. O que provoca a mudança que, por sua vez, requer novas decisões econômicas é justamente a incerteza que o cálculo econômico precisou eliminar a fim de poder prever.

Há imprevisibilidade e, em decorrência disso, a necessidade de uma sucessão de novas interpretações e decisões econômicas que dependem do momento, das circunstâncias e das decisões tomadas por indivíduos livres. Sendo assim, “se fosse possível fazer previamente planos econômicos detalhados para períodos significativamente longos, e depois segui-los à risca, de modo que nenhuma outra decisão econômica importante fosse necessária, a tarefa de elaborar um planejamento completo para toda a atividade econômica não seria algo tão inatingível”. Ocorre que tal detalhamento é impossível e consequentemente o planejamento é inviável.

 Uma vez estabelecido que “o problema econômico da sociedade é basicamente uma questão de se adaptar rapidamente às mudanças das circunstâncias particulares de tempo e lugar”, a necessidade de descentralização decorre naturalmente, restando evidente que “as decisões fundamentais devem ser deixadas a cargo de pessoas que estejam familiarizadas com essas circunstâncias, que possam conhecer diretamente as mudanças relevantes e os recursos imediatamente disponíveis para lidar com elas”.

O processo social e o ordenamento dinâmico e espontâneo que dele deriva é, pois, muito mais complexo do que aquilo que as equações simultâneas da economia matemática conseguem abarcar. Essa complexidade deve-se, principalmente, à indeterminação intrínseca aos indivíduos livres e à incerteza de suas mútuas interações. 

7. O caminho da servidão

Já na introdução da sua obra O caminho da servidão, Hayek afirma algo que para a intelectualidade europeia da época foi heresia e que ainda hoje causa arrepio no grosso da intelectualidade brasileira. Diz ele: “Poucos estão prontos a admitir que a ascensão do nazismo e do fascismo não foi uma reação contra as tendências socialistas do período precedente, mas o resultado necessário dessas mesmas tendências[28].

Quando Hayek publicou O Caminho da Servidão, apenas uns poucos intelectuais do Ocidente tinham olhos para ver o horror totalitário que sufocava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; a maior parte era conivente, ou se fazia de cega. Hoje, embora o socialismo soviético tenha sido derrubado junto com o muro de Berlim, a simpatia pelo socialismo ainda grassa, especialmente na América Latina.

Presumindo, talvez apressadamente, que o socialismo radical já estava praticamente morto no mundo ocidental, Hayek trata de alertar para o risco do socialismo mitigado que o substituiu. Segundo o ilustre economista, a despeito das louváveis finalidades, a redistribuição extensiva de renda e a atuação de um estado previdenciário conduziria, ainda que lenta, indireta e imperfeitamente a um aumento gradual do controle governamental que, ao destruir as bases da economia de mercado, asfixiaria o poder criador de uma civilização livre e alteraria os ideais políticos e o caráter de um povo, encaminhando-o para a mentalidade coletivista que pavimenta o caminho da servidão.

 A tese fundamental do livro é simples e de fácil entendimento: o risco de totalitarismo é inerente à política de planejamento econômico e, no que diz respeito às liberdades fundamentais, não há praticamente distinção entre comunismo, socialismo, nazismo ou fascismo.

O nacional-socialismo foi derrotado, mas as forças que o criaram ainda estariam entre nós: seriam as forças contrárias ao individualismo, entendido por Hayek como o eixo pelo qual se construiu a civilização ocidental.

Enquanto o socialismo pejora o individualismo sob a designação de “individualismo burguês”, não apenas o autor em questão, mas os liberais, de modo geral, sabem que o individualismo não é uma determinação de classe, mas a primeira condição de liberdade.O caminho para a servidão foi, portanto, primeiro o abandono desse caminho de liberdade, ou seja, o abandono progressivo das ideias básicas sobre as quais se erguera a civilização ocidental:

“A tendência moderna ao socialismo não implica apenas um rompimento definitivo com o passado recente, mas com toda a evolução da civilização ocidental […] estamos rapidamente abandonando não só as idéias de Cobden e Bright, de Adam Smith e Hume ou mesmo de Locke e Milton, mas também uma das características mais importantes da civilização ocidental que evoluiu a partir dos fundamentos lançados pelo cristianismo e pelos gregos e romanos. Renunciamos progressivamente não só ao liberalismo dos séculos XVIII e XIX, mas ao individualismo essencial que herdamos de Erasmo e Montaigne, de Cícero e Tácito, de Péricles e Tucídides.[29]

O individualismo estimado pelos liberais não é uma invenção moderna, é um aspecto fundamental do florescimento da nossa própria civilização, fortemente moldada pelos elementos culturais e espirituais da antiguidade clássica e do cristianismo.

O liberalismo, entendido como uma defesa da liberdade econômica, sucede e não antecede o exercício dessa mesma liberdade e do individualismo. Significa dizer que houve, paralelamente ao desenvolvimento do comércio, uma transformação que quebrou a rigidez da sociedade, dinamizando-a e configurando-a em ordens cada vez mais complexas que alguns teóricos compreenderam como mais benéfica do que qualquer outra ordem conscientemente planejada.

 Para tais teóricos importa manter ou traçar estruturas permanentes tão racionais quanto possíveis no âmbito das quais as pessoas possam agir livremente, conduzindo suas atividades conforme seus planos e objetivos individuais. A alternativa a isso, que seria o controle centralizado da atividade econômica de acordo com um plano único, teria por consequência não apenas o totalitarismo, mas também a miséria.

O conceito de socialismo inclui não apenas os ideais de justiça social, igualdade e segurança, mas também os métodos específicos pelos quais os socialistas acreditam poder alcançar esse fim. Esses métodos passam pelo controle centralizado da atividade econômica que dirige conscientemente os recursos da sociedade para finalidades determinadas pelos próprios dirigentes. O debate acerca do socialismo deve, portanto, travar-se não no âmbito das finalidades, mas na explicitação do equívoco dos meios.

O socialismo só deixou de ser imediatamente reconhecido como grave ameaça à liberdade porque, como já vimos, o próprio conceito de liberdade foi reinventado. Da definição estrita e clara de ausência de coerção e de poder arbitrário sobre os homens, passou-se à formulação mais ampla segundo a qual para que o homem pudesse ser verdadeiramente livre deveriam ser atenuadas ou eliminadas as restrições econômicas que o limitavam. Percebe-se que, desse modo, o conceito de liberdade é reinterpretado como algo que está na dependência da provisão, por parte do estado, dos meios para que os indivíduos possam alcançar seus fins.

 Para Hayek, essa redefinição de liberdade torna-a sinônimo de poder ou de riqueza e a reivindicação da liberdade passa a ser a reivindicação de mais poder para o estado para que se faça uma distribuição equitativa de riqueza ou de justiça social.

É a partir da defesa dessa “nova liberdade” que se fortalece a noção paradoxal e malsã de “socialismo democrático”, essa “grande utopia das últimas gerações[30]” que, segundo o autor, “não só é irrealizável, mas o próprio esforço necessário para concretizá-lo gera algo tão inteiramente diverso que poucos dos que agora o desejam estariam dispostos a aceitar suas consequências[31]

A organização intencional das atividades em função de um objetivo social definido, a pretensão de organizar a sociedade inteira e manipular seus recursos visando a uma finalidade única, assim como a ausência de autonomia para a realização de objetivos individuais são características dos vários gêneros de coletivismos, os quais diferem apenas pelo tipo de finalidade perseguida pelo pretensioso dirigismo.

 Não há democracia no ambiente de planificação porque planejar pressupõe prever e “para que o Estado possa antever com exatidão os efeitos das suas decisões, não poderá deixar liberdade de escolha aos indivíduos por elas afetados[32]”. O planejamento pressupõe controle e o controle leva à ditadura: “a planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de coerção e de imposição de ideias, sendo, pois, essencial para que o planejamento em larga escala se torne possível.[33]” A democracia que adota o planejamento se descaracteriza progressivamente.

O Estado de direito é um regime de direito formal, limitado à fixação de normas que criam aquela estrutura permanente de instituições e leis às quais já nos referimos. A concessão de privilégios legais a determinados indivíduos ou grupos (mesmo que sejam minoritários e supostas vítimas de uma injustiça histórica) é incompatível com o princípio liberal do Estado de direito, o qual estará fadado à destruição caso se consagre a um ideal substantivo de justiça distributiva que almeje alcançar a igualdade material entre os diferentes indivíduos[34].

Hayek considera significativo o fato de, tanto socialistas quanto nazistas, terem protestado contra a justiça meramente formal “opondo-se a um direito que não tencionasse determinar os níveis de renda dos diferentes indivíduos e de terem sempre exigido a ‘socialização do direito.[35]” A desigualdade econômica, segundo o economista austríaco, é inerente ao Estado de Direito e “tudo que se pode afirmar a seu favor é que essa desigualdade não é criada intencionalmente com o objetivo de atingir este ou aquele indivíduo de modo particular.[36]

Hayek explica que não existem objetivos puramente econômicos, pois, na verdade, os objetivos dos seres racionais sempre são outros, embora sejam economicamente condicionados. Isso significa que o controle econômico não pode ser menosprezado como algo secundário, já que se trata do controle “dos meios que contribuirão para a realização de todos os nossos fins[37]” Sendo assim, “quem detém o controle exclusivo dos meios também determinará a que fim nos dedicaremos, a que valores atribuiremos maior ou menor importância – em suma, determinará aquilo em que os homens deverão crer e por cuja obtenção deverão esforçar-se[38].

Levando-se isso em consideração convém notar que “o sistema de propriedade privada é a mais importante garantia de liberdade, não só para os proprietários, mas também para os que não o são[39]”, já que a divisão dos meios de produção entre muitas pessoas impede que uma única entidade detenha a posse de todos os meios de produção e, em consequência, disponha de um poder absoluto sobre nós devido à posse dos meios necessários para a consecução dos nossos fins.

 É, pois, a sociedade socialista e nazista e nunca a sociedade liberal que apregoa a exigência de que a política domine a economia. Os liberais sabem que o poder econômico, sendo difuso e disperso é um poder que se contrapõe ao totalitarismo do poder político que quer a economia subjugada a si.

É importante salientar que o próprio Hayek admite como “bastante justificável que o estado auxilie na organização de um esquema abrangente de previdência social[40]” e que, em princípio, “não há incompatibilidade entre o estado oferecer maior segurança auxiliando na organização do sistema de previdência social e a preservação da liberdade individual[41]”.

O planejamento no qual o autor vê risco é aquele “que se destina a proteger indivíduos ou grupos contra a redução de suas rendas (redução que, embora imerecida, ocorre diariamente numa sociedade competitiva), contra perdas que impõem duras privações, sem justificação moral, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência.[42]

A importância da preservação de um sistema de concorrência é justamente a sua capacidade de fragmentar e descentralizar o poder, reduzindo ao mínimo a coerção sobre o indivíduo por meio da separação entre os objetivos políticos e os objetivos econômicos:

“A substituição do poder econômico pelo político, tão demandada hoje em dia, significa necessariamente a substituição de um poder sempre limitado por um outro ao qual ninguém pode escapar. Embora possa constituir um instrumento de coerção, o chamado poder econômico nunca se torna, nas mãos de particulares, um poder exclusivo ou completo, jamais se converte em poder sobre todos os aspectos da vida de outrem. No entanto, centralizado como instrumento do poder político, cria um grau de dependência que mal se distingue da escravidão.[43]

Em diversas passagens desta e de outras obras, Hayek afirma que se trata de escolher entre duas alternativas ou entre duas ordens: “ou a ordem estabelecida pela disciplina impessoal do mercado, ou a ordem comandada pelo arbítrio de alguns indivíduos[44]”, sendo que o favorecimento da primeira ordem possibilitou e possibilita o progresso da civilização, enquanto a submissão à segunda ordem pavimenta o caminhão da servidão e da miséria: “a única alternativa à submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão ao poder também incontrolável e portanto arbitrário de outros homens[45]”.


[1]             A arrogância fatal: os erros do Socialismo. HAYEK, F.A. Tradutores: Ana Maria Capovilla e Cândido Mendes Prunes. Edição preliminar de 900 exemplares, sem revisão final, especial para o VIII Fórum da Liberdade, do IEE.p.23

[2]             Idem.p.26

[3]     Idem p.72

[4]             p.40

[5]             p.75

[6]             p. 75

[7]             p.75

[8]             p.91

[9]             p.92

[10]           p.93

[11]           p.93

[12]           p.77

[13]           p.95

[14]           p.95

[15]           p.95

[16]           p.95

[17]           p.97

[18]           p.99

[19]           p.102

[20]           p.130

[21]           p.137

[22]           p.154

[23]           p.159

[24]           p.160

[25]           p.109

[26]           p.161

[27]           p.161

[28]           Hayek, F.A. O caminho da servidão. – São Paulo : Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.p.31

[29]           Idem p. 39

[30]           Idem p.53

[31]           Idem p.53

[32]           Idem p.92

[33]           Idem p.86

[34]           Idem p.94

[35]           Idem.95

[36]           Idem 94

[37]           Idem.104

[38]           Idem p.104

[39]           Idem p.115

[40]           Idem p.128

[41] Idem p.128

[42] Idem p.129

[43] Idem p. 147

[44] Idem. p. 189

[45] Idem p. 193

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