O livro “Ciência da vida após a morte”, à luz da filosofia bergsoniana

O filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), prêmio Nobel, autor de A Evolução Criadora, Matéria e Memória, As duas fontes da moral e da religião etc. nutria forte interesse pelo estudo dos fenômenos ditos paranormais. Durante um ano ele foi presidente da Society for Psychical Researche (Sociedade de de pesquisa psíquica) de Londres.

O período de formação da Sociedade de Pesquisa Psíquica foi uma época de intensa efervescência intelectual na qual as ciências naturais fizeram grandes avanços para explicar o mundo em termos que desafiaram os tradicionais pontos de vista religiosos. A década de 1850 foi marcada por uma explosão de fatos paranormais (aparições, clarividência, premonições etc.) e pelo consequente interesse por eles. Constituíam-se as bases do espiritismo e intensos debates entre cientistas.

A Sociedade de Pesquisa Psíquica foi fundada em Londres em 20 de fevereiro de 1882 com o objetivo explícito de investigar os inúmeros fenômenos designados por termos como hipnótico, psíquico e espíritas e o fazer no mesmo espírito de investigação exata e desapaixonada que permitiu à ciência resolver outros tipos de problemas. Foi imbuída desse espírito científico, baseando-se em métodos experimentais disciplinados e métodos padronizados de descrição que a Sociedade de Pesquisa Psíquica criou seu quadro metodológico e administrativo para investigar tais fenômenos, incluindo a fundação de uma revista acadêmica para relatar e discutir a pesquisa psíquica em todo o mundo.

O período da presidência de Henri Bergson (1913-1914) foi iniciada pela conferência que depois se transformou em artigo intitulado Fantôme de vivants et Recherches psychiques (Fantasma de vivos e pesquisas psíquicas), na qual aborda o fenômeno da telepatia. Nessa conferência, Bergson se diz orgulhoso por ter sido eleito presidente dessa sociedade, confessa sua “ardente curiosidade” em relação aos trabalhos ali desenvolvidos e elogia a coragem com que seus membros levaram adiante suas pesquisas em meio a prevenções e zombarias de pseudocientistas que condenavam, em nome da ciência, as pesquisas desenvolvidas naquele contexto:

“De fato, o que os senhores despenderam de engenhosidade, discernimento, paciência, tenacidade na exploração da terra incógnita dos fenômenos sempre me pareceu admirável. Porém, mais do que essa engenhosidade e mais que esse discernimento, mais que sua infatigável perseverança, admiro a coragem de que precisaram, sobretudo nos primeiros anos, para lutar contra as prevenções de boa parte do público e para enfrentar a zombaria que assusta os mais valentes”[1].

Pois bem, um século se passou e, apesar de alguns avanços, pode-se dizer que o recrudescimento das mentes materialistas continua fazendo daqueles que avançam nas investigações científicas desse tipo de fenômeno motivo de escárnio injusto sob o pretexto de um ceticismo que não passa, na verdade, de uma fragilidade dogmática. É o que denunciam os autores do livro “Science of Life After Death”, publicado recentemente pela editora alemã-britânica Springer Nature, uma das maiores do mundo no ramo científico. Ao abordarem as barreiras culturais contra um exame imparcial das evidências disponíveis para a sobrevivência da consciência após a morte, os autores, todos brasileiros, explicam:

“Na contramão da atitude verdadeiramente cética de exigir que as evidências sejam mostradas, e estudá-las escrupulosamente, sua rejeição a priori, com base apenas em dogmas fisicalistas, é uma atitude essencialmente anticientífica. Na esmagadora maioria dos casos observados, o termo ceticismo, portanto, é evocado como estratégica retórica para emprestar uma autoridade e respeitabilidade de crítica racional ao que, na realidade é uma negação dogmática”[2].    

O fisicalismo é uma doutrina metafísica que pretende se passar por científica quando, na verdade, trai o espírito de investigação inerente à ciência quando se deixa conduzir por preconceitos e pressupostos. Para os autores de Ciência da vida após a morte, “a ubiquidade do fisicalismo no ambiente acadêmico é uma anomalia do último século[3]”. Um século atrás, porém, Henri Bergson já denunciava essa anomalia.

Em vários de seus textos, Bergson refuta o paralelismo psicofisiológico, hipótese fisicalista que não chegou sequer a ser problematizada na modernidade, tendo sido acolhida pelos médicos do século XVIII para ser, em seguida, herdada pela psicofisiologia. No ensaio A alma e o corpo, Bergson explica que, enquanto na metafísica cartesiana ainda havia espaço para a vontade livre – a despeito da estrutura de equivalência entre  o psíquico e o físico – em Espinosa e em Leibniz a liberdade desaparecera “varrida pela lógica do sistema[4]”, deixando assim o caminho aberto para “um cartesianismo diminuído, estreito, segundo o qual a vida mental seria apenas um aspecto da vida cerebral, com a pretensa alma reduzindo-se a certos fenômenos cerebrais aos quais a consciência se somaria como um clarão fosforescente[5].”

Essa hipótese se estreitara e se infiltrara na fisiologia e foi assim que “filósofos como La mettrie, Helvétius, Charles Bonnet, Cabanis, cujos vínculos com o cartesianismo são bem conhecidos, levaram para a ciência do século XIX o que ela melhor podia utilizar da metafísica do século XVII”[6]. O esforço de Bergson foi no sentido de fazer notar que o paralelismo psicofisiológico não é uma teoria científica – embora se apresente sob essa roupagem – mas sim uma hipótese metafísica:

“É compreensível que cientistas que hoje filosofam sobre a relação entre o psíquico e o físico se aliem à hipótese do paralelismo: os metafísicos praticamente não lhe deram outra coisa. Admito ainda que cheguem a preferir a doutrina paralelista a todas as que poderiam ser obtidas pelo mesmo método de construção a priori: encontram nessa filosofia um incentivo para irem em frente. Mas que um ou outro deles venha dizer-nos que isso é ciência, que a experiência é que nos revela um paralelismo rigoroso e completo entre a vida cerebral e a vida mental, ah, não! Vamos interrompê-lo e responder-lhe: você, cientista, sem dúvida pode defender sua tese, como o metafísico a defende; mas então quem fala já não é o cientista que existe em você, é o metafísico. Você está simplesmente nos devolvendo o que lhe emprestamos. Já conhecemos a doutrina que está nos trazendo: saiu de nossas oficinas; fomos nós, filósofos, que a fabricamos; e é mercadoria velha, velhíssima. Nem por isso vale menos, com toda certeza; mas nem por isso é melhor. Ofereça-a tal como é, e não vá fazer passar por um resultado da ciência, por uma teoria modelada pelos fatos e capaz de modelar-se por eles, uma doutrina que, antes mesmo da eclosão de nossa fisiologia e de nossa psicologia, pôde assumir a forma perfeita e definitiva pela qual se reconhece uma construção metafísica”[7].

O que Bergson chama de “paralelismo psicofisiológico” é também tratado pelos autores do livro Ciência da vida após a morte como um dos principais argumentos contra a hipótese da sobrevivência da consciência. Afirmam eles que:

“Muitas vezes é dado como certo, tanto pelo público leigo quanto pelo público acadêmico, que a neurociência provou a visão fisicalista da mente, ou seja, que a mente é simplesmente um produto da atividade química e elétrica do cérebro. Assim, o argumento continua, se o cérebro é uma condição necessária para a mente, esta não pode existir uma vez que o cérebro está morto”[8].

O fato de que mudanças no cérebro estão associadas a mudanças na mente costuma ser apresentado como prova de que o cérebro gera a mente, ou seja, evidências empíricas como as modificações na mente provocadas por drogas, lesões cerebrais ou disfunções fisiológicas são normalmente interpretados a favor da tese do paralelismo. O livro Ciência da vida após a morte, no entanto, explica que: “uma conclusão fisicalista baseada nos três fenômenos listados acima não é tão direta. Isso porque há uma outra perspectiva principal para avaliar essa evidência: o cérebro como instrumento de manifestação da mente[9].”   

Os autores nos lembram que “essa hipótese foi bem discutida há mais de um século[10]” e citam como referência o filósofo, psicólogo e médico William James que afirma que “o cérebro pode ser um órgão para limitar e determinar de uma certa forma uma consciência produzida em outro lugar”.[11]É a hipótese do cérebro como um órgão transmissor e não gerador da mente ou consciência: “o cérebro seria semelhante a um aparelho de TV, que não gera o programa de TV, mas nos permite assistir-lhe”[12].

Segundo os autores de Ciência da vida após a morte, “a hipótese do cérebro como instrumento da mente explica os achados neurocientíficos e, além disso, explica melhor os atos voluntários e as experiências espirituais[13]”. Essa hipótese é justamente a hipótese que Bergson, admirador e interlocutor de James, assume após seus profundos estudos.

Na difícil e profunda obra Matéria e Memória, Bergson enfrenta o problema da relação entre corpo e alma ou o problema da inserção do espírito na matéria e o faz lidando com os fatos clínicos, estudando as doenças mentais, mais especificamente as afasias, dando-lhes, porém, uma explicação distinta daquela fornecida pela escola associacionista.  

Empreendendo um novo exame da hipótese das localizações cerebrais, reinterpretando a psicopatologia dos distúrbios da linguagem e do reconhecimento, Bergson refuta a hipótese do paralelismo psicológico no seu próprio terreno, ou seja, utilizando-se dos mesmos fatos clínicos que supostamente a confirmaria. Para Bergson, o exame dos fatos conhecidos, depurado de ideias preconcebidas, “um exame atento da vida do espírito e de seu acompanhamento fisiológico[14]”, sugerem que “há infinitamente mais numa consciência humana do que no cérebro correspondente.[15]

Se a ciência do cérebro fosse perfeita, afirma Bergson, “poderíamos adivinhar o que se passa no cérebro para um estado de alma determinado; mas a operação inversa seria impossível,     porque teríamos que escolher, para um mesmo estado do cérebro, entre uma infinidade de estados de alma diferentes e igualmente apropriados[16]”. O cérebro, afirma Bergson, “não é um órgão de pensamento, nem de sentimento, nem de consciência; mas faz com que consciência, sentimento e pensamento permaneçam tensionados para a vida real e, consequentemente, capazes de ação eficaz. […] o cérebro é o órgão de atenção à vida”[17].  

A hipótese de um transbordamento da consciência em relação ao organismo é constante  em Bergson e perpassa toda a sua obra, por isso mesmo ele combate reiteradamente a hipótese paralelista que torna equivalente o mental e cerebral. Assim como, de uma maneira metódica, os autores de Ciência da vida após a morte apresentaram primeiramente a refutação da teoria fisicalista do cérebro como gerador da mente antes de adentrarem propriamente na questão da sobrevivência após a morte, o próprio Bergson percorreu um itinerário parecido nas suas reflexões, apresentando a referida refutação como um preâmbulo necessário ao enfrentamento do problema filosófico do destino da alma:

“Se o trabalho do cérebro correspondesse à totalidade da consciência, se houvesse equivalência entre o cerebral e o mental, a consciência poderia seguir o destino do cérebro e a morte ser o fim de tudo: pelo menos a experiência não diria o contrário, e o filósofo que afirmasse a sobrevivência ficaria reduzido a apoiar sua tese em alguma construção metafísica, geralmente frágil. Mas, se, como procuramos demonstrar, a vida mental transborda a vida cerebral, se o cérebro se limita a traduzir em movimentos uma pequena parte do que se passa na consciência, então a sobrevivência se torna tão verossímil que o ônus da prova caberá a quem negar muito mais do que a quem afirmar; pois a única razão para acreditar numa extinção da consciência após a morte é que vemos o corpo desorganizar-se, e essa razão deixa de valer se também a independência da quase totalidade da consciência em relação ao corpo é um fato constatável”[18].

Do capítulo quatro ao capítulo seis, após um resgate da ideia da sobrevivência da alma na história das religiões e da cultura de modo geral e após uma exposição e desconstrução dos pressupostos filosóficos, ideológicos e metodológicos contra a hipótese da sobrevivência, os autores de Ciência da vida após a morte passam a explorar o terreno das evidências de sobrevivência fornecidas por rigorosos estudos.

Essas evidências são as experiências de quase morte (EQMs) e experiências fora do corpo, casos sugestivos de reencarnação e experiências mediúnicas. Trata-se do escopo principal do livro, para o qual os pesquisadores reuniram centenas de trabalhos científicos realizados ao redor do mundo. Antes, porém, da exposição propriamente dita das referidas evidências, os autores têm o zelo de explicar o que seriam evidências para um objeto tão peculiar de análise:

“Evidências da sobrevivência após a morte de uma determinada personalidade seriam manifestações que indicam a continuidade do caráter e da memória pelos meios que a personalidade tem à sua disposição (como o corpo de um médium ou um novo corpo em casos sugestivos de reencarnação). […] Se esse tipo de evidência for consistentemente encontrado, especialmente por diferentes pesquisadores, usando métodos diferentes, ele falsificaria visões fisicalistas da mente e apontaria para a sobrevivência à morte corporal[19].”

A boa avaliação, porém, do conjunto de evidências para a vida após a morte, apresentados no referido livro, pressupõe um entendimento prévio referente ao método adequado para abordá-las. Para tanto, valemo-nos, mais uma vez, da filosofia bergsoniana.

Para Bergson, dois motivos contribuem para a resistência dos cientistas na consideração dos fenômenos do tipo daqueles estudados na Sociedade de Pesquisa Psíquicas (ou seja, fenômenos como os que compõem o conjunto de evidências apresentados no livro Ciência da vida após a morte): uma repulsa em relação ao método e uma metafísica inconsciente de si mesma. Já nos referimos a essa metafísica inconsciente herdada pelos cientistas, trata-se da própria hipótese do paralelismo psicofisiológico. Quanto ao método, é de se notar que os procedimentos de pesquisa e verificação adotados no estudo de tais fenômenos estão “a meia distância entre o método do historiador e o do juiz de instrução”.[20]

Apesar de naturais (no sentido de estarem submetidas a leis – embora ainda desconhecidas), as comunicações de espíritos através de médiuns, as experiências de quase morte, as experiências fora do corpo etc. correspondem a fenômenos que não se deixam abordar à maneira do fato físico, químico ou biológico. Na sua peculiaridade investigativa, os pesquisadores de tais fenômenos observam os fatos sem prevenções dogmáticas, estudam documentos, questionam testemunhas, confrontam-nas umas com as outras, informam-se sobre elas, colhem numerosos fatos, analisam, inspecionam, criticam e, com isso, obtêm um tipo de certeza que não é matemática nem física, assemelhando-se mais à “certeza que se obtém em matéria histórica ou  jurídica[21].”

O desenvolvimento do método experimental na modernidade não se deu, segundo Bergson, por meio de um alargamento do campo de experiência, mas por meio de uma redução desse campo àquilo que poderia ser mensurável. Como, porém, “é da essência do espírito não se prestar a medidas[22]”, a ciência moderna tentou reduzir os fenômenos do espírito ou da mente aos seus supostos equivalentes mensuráveis encontrados supostamente no cérebro, passando a afastar-se quase instintivamente dos casos que contradiziam a hipótese da equivalência entre o  psíquico e o cerebral.

Tais casos eram justamente aqueles estudados pela Sociedade de Pesquisas Psíquicas na época de Bergson e que continuaram a ser estudados criteriosamente até os nossos dias, perfazendo hoje um conjunto enorme de evidências que, analisadas sem preconceitos, estabelecem a sobrevivência da consciência humana após a morte corporal como um fato: conclusão a que chegaram os autores de Ciência da vida após a morte e à qual chegará todo aquele que analisar tal conjunto de evidências com inteligência, bom senso e boa fé.


[1] BERGSON. “Fantasmas de vivos” e “pesquisa psíquica” In: A energia espiritual. SP: WMF Martins Fontes, 2009.

[2] Ciência da vida após a morte. Alexander Moreira Almeida, Mariana de Abreu Costa, Humberto Schubert Coelho. 1°ed. Belo Horizonte, MG: Editora Ampla, 2023.  p.79

[3]Ciência da vida após a morte p.80  

[4] BERGSON. A alma e o corpo. In A energia espiritual. p. 40

[5] Idem p.40

[6] Idem p.40

[7] BERGSON. A alma e o corpo. In A energia espiritual. p.37-38

[8] ALMEIDA, COSTA, COELHO. Ciência da vida após a morte. p.24

[9] Idem p.25

[10] Idem p.25

[11] JAMES, W. Human immortality: two supposed objetcion to the doctrine. Apud ALMEIDA, COSTA, COELHO. Ciência da vida após a morte. p.25

[12] ALMEIDA, COSTA, COELHO. Ciência da vida após a morte. p.25

[13] Idem p.26

[14] BERGSON. A alma e o corpo. In A energia espiritual. p.41

[15] Idem p.41

[16] Idem p.42

[17] Idem p.47

[18] BERGSON. A alma e o corpo. In A energia espiritual. p.58

[19] ALMEIDA, COSTA, COELHO. Ciência da vida após a morte p.34

[20] BERGSON. “Fantasmas de vivos” e “pesquisa psíquica” In: A energia espiritual p.62

[21] Idem p.65

[22] Idem p.71

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