Resenha – Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social (Simone Weil)

O livro Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social, de Simone Weil, escrito em 1934, começa com um diagnóstico um tanto sombrio e pessimista ao constatar que, embora os movimentos autoritários e nacionalistas de seu tempo tenham arruinado as esperanças postas na democracia e no pacifismo, isso era apenas uma parte do mal, que seria bem mais profundo e extenso.[1]

O progresso técnico, no lugar de trazer bem-estar, havia trazido às massas a miséria física e moral, além de as inovações técnicas terem sido usadas na indústria da guerra. Outra questão apontada é a dificuldade na difusão do conhecimento para as massas, que acabam tendo acesso apenas a uma caricatura de cultura, o que as impede de terem clareza de julgamento, habituando-se à credulidade.

Aquela era, para Weil, “uma época privada de futuro. A espera daquilo que virá não é mais esperança, mas angústia.[2]” Em situações desesperadas a palavra revolução costuma ser rica em esperança, mas, constata a filósofa, “tudo se passa como se o movimento revolucionário caísse em decadência com o próprio regime que ele almeja destruir”[3].

A crítica de Simone Weil ao marxismo pode ser considerada como parte do seu reformismo ou proposta de diminuição da opressão social, apontando para possibilidades de uma vida menos desumana por meio do estímulo à capacidade de pensar e atuar individuais, pela não submissão da vontade a um suposto determinismo histórico, pela descentralização da economia e pelo desapego da crença ingênua em um progresso econômico ilimitado.

Segundo Weil, o “socialismo científico passou ao estado de dogma, exatamente como todos os resultados obtidos pela ciência moderna, resultados nos quais cada um pensa que tem o dever de acreditar, sem jamais sonhar em inquirir sobre o método”[4]. Para ela, a demonstração de Marx comportava muito mais dificuldades do que os propagandistas do socialismo científico deixavam supor. Ele teria dado conta tão bem do mecanismo de opressão capitalista que só a duras penas fora capaz de especular sobre o modo como esse mecanismo pararia de funcionar.

Weil contesta o postulado de que a sociedade capitalista tenha elaborado em si mesma as condições materiais que conduziriam a um regime de liberdade e igualdade. Para ela, a instauração de um tal regime supõe uma transformação prévia da produção e da cultura. Um dos aspectos destacados é o fato de nossa civilização estar fundada sobre a especialização, o que implicaria a sujeição daqueles que executam àqueles que coordenam, de modo que “sob uma tal base, só se pode organizar e aperfeiçoar a opressão mas não aliviá-la[5].”

 A literatura socialista, diz Weil, admite a concepção marxista de forças produtivas como um postulado de caráter mitológico. Essa doutrina, porém, é “absolutamente desprovida de todo caráter científico”.[6]Marx não explica por que as forças produtivas tenderiam a aumentar, sendo susceptíveis a um desenvolvimento ilimitado. Tal pressuposto, explica ela,  estaria ligado às origens hegelianas do pensamento marxista.

Hegel, explica Weil, acreditava em um espírito oculto trabalhando no universo e acreditava, por conseguinte, “que a história do mundo é simplesmente a história do espírito no mundo, o qual, como tudo o que é espiritual, tende indefinidamente à perfeição[7].” Marx, por sua vez, substituiu o espírito pela matéria como o motor da história, incorrendo no paradoxo extraordinário de atribuir à matéria “aquilo que é a essência mesmo do espírito, uma perpetua aspiração ao melhor”[8]. Na interpretação de Simone Weil, isso aproximaria Marx da própria corrente geral do pensamento capitalista:

Transferir o princípio do progresso do espírito às coisas é dar uma expressão filosófica a essa inversão da relação entre o sujeito e o objeto na qual Marx via a essência mesma do capitalismo. A ascensão da grande indústria fez das forças produtivas a divindade de um tipo de religião da qual Marx, a despeito de si mesmo, sofreu influência ao elaborar a sua concepção de história.[9]

Em nome dessa “religião das forças produtivas”, continua Weil, “gerações de líderes empresariais esmagaram as massas sem o menor remorso.” O paradoxo é que essa mesma crença constitui igualmente um fator de opressão no interior do movimento socialista: “Todas as religiões fazem do homem um simples instrumento da providência, e o socialismo, ele também, colocou os homens a serviço do progresso histórico, ou seja, do progresso da produção.[10]

Apesar dessas críticas, Weil acredita que Marx “jamais teve outro móbil que uma aspiração generosa à liberdade e à igualdade[11]”, acrescentando, porém, que essa aspiração pertence apenas àquilo que Marx nomeava desdenhosamente socialismo utópico. 

Outro aspecto a ser considerado na abordagem de Simone Weil é que ela separa o que chama de “hegelianismo reverso” de Marx daquilo que considera o aspecto mais relevante do seu pensamento e a sua verdadeira contribuição: o materialismo não como doutrina, mas como método de conhecimento e de ação:

A grande ideia de Marx é que na sociedade, assim como na natureza, nada se efetua a não ser por transformações materiais. Os homens fazem sua própria história, mas em condições determinadas. Desejar não é nada, é necessário conhecer as condições materiais que determinam nossa possibilidade de ação e no domínio social as condições são definidas pela maneira como o homem obedece às necessidades materiais suprindo suas próprias necessidades, dito de outra forma, pelo modo de produção.[12]

Além da crença no aumento ilimitado das forças produtivas, outro dogma da religião marxista é a crença na etapa superior do comunismo como último termo da evolução social. É em nome dessa utopia, diz Weil, que muito sangue é vertido em vão: “a palavra revolução é uma palavra pela qual se mata, pela qual se morre, pela qual se envia as massas populares à morte, mas que não tem conteúdo.[13]

Ao invés de dar ao ideal revolucionário o sentido de uma perspectiva possível, Weil ensaia pensá-lo ao menos como o limite teórico de transformações sociais realizáveis. Para tanto, ela aponta a necessidade de distinguir entre opressão e subordinação dos caprichos individuais a uma ordem social. Essa diferenciação se faz necessária porque, no entendimento da autora, toda e qualquer sociedade restringirá a vida dos indivíduos em limites estreitos e lhes imporá regras, limitação essa que só merece o nome de opressão “na medida em que, por provocar uma separação entre quem a exerce e quem a sofre, coloca estes últimos ao arbítrio dos primeiros e assim faz pesar até o esmagamento físico e moral a pressão dos que mandam sobre os que executam[14].”A filósofa pondera ainda que, mesmo feita essa distinção, não é tão razoável supor que a supressão da opressão seja possível.

A história sempre mostrou os fracassos das tentativas de supressão da opressão. Um dos casos mais emblemáticos foi o da revolução francesa, ocasião em que, após se ter efetivamente conseguido eliminar uma forma de opressão, instalou-se imediatamente uma opressão nova[15]. Weil explica que, ao refletir sobre a revolução francesa, “Marx compreendeu não ser possível suprimir a opressão enquanto subsistam as causas que a tornam inevitável, causas essas que residem nas condições objetivas, materiais, da organização social.[16]”Para ela, porém, as análises concretas com as quais o marxismo ilustrou esse esquema não chegaram a esclarecer o mecanismo da opressão, parecendo-lhes ser suficiente para explicar a opressão social supor que ela corresponde a uma função na luta contra a natureza.

Weil busca avançar nessa análise mostrando que a primeira das condições objetivas da opressão é a existência de privilégios. Esses privilégios podem ser de vários tipos como a detenção do saber, das armas, do dinheiro etc. Os privilégios, porém, não bastam para determinar a opressão:

A desigualdade poderia facilmente ser suavizada pela resistência dos fracos e pelo espírito de justiça dos fortes; não daria origem a uma necessidade ainda mais brutal do que as próprias necessidades naturais, se não interviesse outro fator, a saber a luta pelo poder[17].

A conservação do poder é uma necessidade vital para os poderosos, mas a estabilidade do poder não passa de uma quimera, porque o poder traz em si mesmo uma “contradição fundamental.”[18]Aqueles que julgam possuí-lo são instados incessantemente a reforçar o seu poder, sob pena de perdê-lo e, em luta constante por uma dominação absoluta impossível de possuir, padecem torturas infernais.

A rigor, nunca há poder, mas corrida pelo poder, uma “corrida sem fim, sem limite, sem medida”[19], que exige esforços igualmente ilimitados que acabam comprometendo a própria vida de quem nela está empenhado, assim, “a corrida pelo poder escraviza a todos, os poderosos como os fracos.[20]” e submete os homens à uma espécie de vertigem, impondo-se a eles como fins absolutos.

Nessa substituição dos meios pelos fins, Simone Weil enxerga o mal essencial da humanidade e a loucura fundamental da história. O problema não é que os homens sejam movidos pelo interesse próprio, pois a ação egoísta tem alguma razoabilidade e não pode engendrar males ilimitados. O que tem movido a existência social, porém, é a irracionalidade do sacrifício “da vida humana em si e nos outros por coisas que constituem apenas meios para viver melhor. Esse sacrifício assume várias formas, mas tudo se resume à questão do poder[21].” 

O poder, porém, é apenas um meio. Possuir poder é ter meios de ação para alcançar determinados fins, mas “a busca do poder, pelo próprio fato de ser essencialmente impotente para apreender seu objeto exclui toda consideração de um fim e vem, por uma inversão inevitável, ocupar o lugar de todos os fins.[22]”Essa inversão da relação entre os meios e os fins é, segundo Weil, a loucura insensata e sangrenta que tem movido a história, rebaixando a humanidade a ser “a coisa de coisas inertes.[23]

Isso tenderia a se agravar indefinidamente se o limite da concentração de poder não fosse encontrado na própria natureza das coisas. Há necessidades inelutáveis que limitam toda espécie de poder: o poder depende, por exemplo, de instrumentos que têm um alcance determinado em cada situação. Além disso, o poder exercido por um ser humano se estende apenas ao que está efetivamente submetido ao seu controle e as ferramentas de controle são limitadas[24]. Em toda sociedade opressiva, os poderosos ordenam além daquilo que efetivamente podem impor porque sentem-se afiançados por uma espécie de direito divino de comandar, enquanto os que lhe estão sob o jugo sentem-se esmagados por um poder que lhes parece diabólico[25].

A despeito dessa crença sobrenatural, o fato é que o poder só pode estender suas bases até certo ponto, após o qual se depara com uma parede intransponível. Apesar disso, ele não pode parar, porque o aguilhão da vontade de poder impele a ir adiante, a querer sempre mais, a ir sempre além, estendendo-se até onde ele não pode controlar, comandando além do que ele pode impor e esgotando assim seus próprios recursos:

“Tal é a contradição interna que todo regime opressor carrega em si como uma semente de morte; é constituída pela oposição entre o caráter necessariamente limitado das bases materiais do poder e o caráter necessariamente ilimitado da corrida pelo poder enquanto relação entre os homens”[26].

Quando um poder ultrapassa assim os limites impostos pela natureza das coisas, estendendo-se além do que ele pode controlar, gera-se a desordem e com ela as reações imprevisíveis e incontroláveis. A própria natureza, portanto, controla e pune a desmesura, e as transformações da vida social, as mudanças de regime se preparam lentamente, de um modo quase subterrâneo. Se é assim, cumpre admitir que, a rigor, não há revolução no sentido de uma inversão repentina das relações de força:

“Nunca há realmente uma ruptura de continuidade, nem mesmo quando a transformação do regime parece ser resultado de uma luta sangrenta, porque a vitória então apenas consagra forças que, mesmo antes da luta, constituíam o fator decisivo na vida coletiva, formas sociais que há muito começaram a substituir gradualmente aqueles sobre os quais repousava o regime decadente.”[27]

Seja lá como for, o fato é que, na visão um tanto pessimista de Weil, as transformações sociais refletem apenas “um jogo surdo de forças cegas que se unem ou colidem, que progridem ou declinam, que se substituem, sem nunca cessar de esmagar sob elas os infelizes humanos.[28]”Não há, portanto, em Weil, nenhuma crença ingênua de que o progresso material se faz acompanhar da libertação da opressão. Seu diagnóstico, ao contrário, faz notar que:

“Apesar do progresso, o homem não saiu da condição servil em que se encontrava quando foi entregue fraco e nu a todas as forças cegas que compõem o universo. Simplesmente o poder que o mantém de joelhos foi transferido da matéria inerte para a sociedade que ele mesmo forma com seus semelhantes.”[29]

A despeito de toda opressão, o homem se sente nascido para a liberdade e não pode aceitar a escravidão, porque ele pensa. Não nos basta, porém, apenas sonhar com a liberdade, é preciso ir além e conceber a liberdade perfeita. Weil estabelece, assim, uma distinção entre sonhar uma liberdade e conceber uma liberdade ideal e explica que, embora o ideal seja tão irrealizável quanto o sonho, diferentemente do sonho, ele se relaciona com a realidade. O ideal “permite como limite, organizar situações reais ou realizáveis na ordem do menor para o maior valor.[30]” Esse ideal, ou essa liberdade perfeita, porém, deve ser representada claramente “não na esperança de alcançá-la, mas na esperança de alcançar uma liberdade menos imperfeita do que a nossa própria condição atual[31]”.

Conforme a distinção anteriormente mencionada entre opressão e subordinação dos caprichos individuais a uma ordem social, convém salientar, de início, que a liberdade perfeita “não pode ser concebida como consistindo simplesmente no desaparecimento dessa necessidade cuja pressão nós sofremos perpetuamente.[32]” Não faz sentido pensar a liberdade nesses termos porque enquanto o homem viver, enquanto ele for “um ínfimo fragmento deste universo implacável, a pressão da necessidade nunca vai diminuir[33]”. A liberdade não é puro arbítrio, pois ela pressupõe o autodomínio:

“Não há autodomínio sem disciplina, e não há outra fonte de disciplina para o homem senão o esforço exigido pelos obstáculos externos. […] São os obstáculos que a pessoa encontra e deve superar que fornecem a oportunidade de vencer a si mesmo.”[34].

A liberdade, em suma, é algo mais do que a possibilidade de obter sem esforço aquilo que é agradável. A concepção à qual Simone Weil se refere é a liberdade heroica da sabedoria comum, que consiste em bem dispor da própria capacidade de julgar e agir:

“Existe um conceito muito diferente de liberdade, uma concepção heroica que é a da sabedoria comum. A verdadeira liberdade não se define por uma relação entre desejo e satisfação, mas por uma relação entre pensamento e ação; seria completamente livre o homem cujas ações procedessem de um julgamento preliminar sobre o fim que se propõe e a sequência dos meios apropriados para atingir esse fim. Não importa se as próprias ações são fáceis ou dolorosas, e nem mesmo importa se são bem-sucedidas; a dor e o fracasso podem tornar um homem miserável, mas não podem humilhá-lo enquanto ele tiver seu próprio arbítrio. E dispor das próprias ações não significa de forma alguma agir arbitrariamente; as ações arbitrárias não procedem de nenhum julgamento e não podem ser propriamente chamadas de livres. Todo julgamento incide sobre uma situação objetiva e, consequentemente, sobre um tecido de necessidades. O homem vivo não pode, em caso algum, deixar de ser cercado por todos os lados por uma necessidade absolutamente inflexível; mas como ele pensa, ele tem a escolha entre ceder cegamente ao estímulo com que ela o empurra de fora, ou se conformar com a representação interior que ele forja disso; e é nisso que consiste a oposição entre servidão e liberdade.”[35]  

Alinhada com as melhores postulações da sabedoria antiga, Weil explica que a visão clara do possível e do impossível, do fácil e do difícil, assim como uma visão das dificuldades que separam o projeto de sua realização apaga os desejos insaciáveis e os temores vãos, procedendo daí as virtudes da temperança e da coragem, “sem as quais a vida é apenas um delírio vergonho.[36]

Agir com sabedoria e virtude pressupõe a consciência da impossibilidade de uma mente humana considerar todos os fatores dos quais depende o êxito de sua ação. Qualquer situação, lembra Weil, deixa espaço para uma infinidade de acasos que nos fogem ao controle. Mas isso não é o que realmente importa: “podemos facilmente suportar que as consequências de nossas ações dependam do acaso incontrolável; o que devemos a todo custo eliminar do acaso são nossas próprias ações.[37]

Não há nada melhor para experimentar a liberdade do que o deparar-se com a necessidade em seu estado bruto. A necessidade, tal como é imposta pela natureza, não ultrapassa os limites dentro dos quais o ser humano é instado a se reinventar por meio da criação de instrumentos capazes de se contrapor a essa força imponente. O homem é livre diante da necessidade imposta pela natureza, mas escravo de si mesmo quando, dominando as forças da natureza, começa a dominar os outros homens. Somente os homens, escreve Weil, podem escravizar outros homens:

“Na medida em que o destino de um homem depende de outros homens, sua própria vida escapa não apenas de suas mãos, mas também de sua inteligência; julgamento e resolução não têm mais utilidade; em vez de combinar e agir, deve rebaixar-se a mendigar ou ameaçar; e a alma cai em poços sem fundo de desejo e medo, pois não há limites para as satisfações e sofrimentos que um homem pode receber de outros homens.”[38]

Mas há algo capaz de pesar mais sobre o homem do que a natureza e outro homem, é a coletividade. Sendo a coletividade algo absolutamente abstrato, inacessível aos sentidos, o indivíduo não pode alcançá-la, sentindo-se diante dela como sendo da ordem do infinitamente pequeno: “Se os caprichos de um indivíduo parecem a todos os outros como arbitrários, os sobressaltos da vida coletiva parecem elevar a arbitrariedade à segunda potência[39]”.

Embora as formas coletivas excedam infinitamente as forças individuais, tal não se aplica ao reino do pensamento, no qual a situação é inversa: “ali o indivíduo vai além da coletividade tanto quanto algo supera nada, porque o pensamento só se forma em uma mente que se encontra sozinha diante de si mesma; as coletividades não pensam[40].” De todo modo, o pensamento não constitui uma força em si mesma.

Os homens só deveriam enredar-se em teias coletivas se fossem capazes de o fazer na qualidade de homens, sem nunca tratarem uns aos outros como coisas; se fossem capazes de ver a si mesmo em cada companheiro de trabalho, amando-os como recomenda a máxima evangélica. Essa imagem, porém, admite Weil, está tão distante das condições reais da vida humana quanto a ficção da época de ouro, mas, à diferença da ficção, ela deve servir de ponto de referência, de parâmetro para a apreciação das formas sociais efetivas.

Para Simone Weil, na civilização moderna, o indivíduo está entregue a uma coletividade cega e os homens encontram-se incapazes de submeter suas ações aos seus pensamentos ou, até mesmo, encontram-se incapacitados de pensar. Se, por um lado, é bastante difícil levar o conhecimento às massas e disseminar ideias claras, raciocínio correto e percepções razoáveis, por outro lado “toda tentativa de embrutecer os seres humanos encontra poderosos meios à sua disposição”. A ausência de pensamento livre torna possível impor doutrinas oficiais totalmente sem sentido, como o fascismo, por exemplo, o qual, por sua vez, consegue aumentar consideravelmente a estupidez geral, gerando um ciclo vicioso no qual há pouco espaço para a esperança. O diagnóstico é o de uma sociedade em desequilíbrio, na qual “há uma desproporção monstruosa entre o corpo do homem, o espírito do homem e as coisas que constituem atualmente os elementos da vida humana.”

Dentre os problemas apontados, destaca-se a tendência à centralização do poder e a tendência à coletivização; problemas esses que estão ligados à burocratização e ao modo de produção. De modo geral, as desarmonias e os desequilíbrios da nossa civilização podem ser remetidos ao que Weil considera como a lei de toda sociedade opressiva: a inversão da relação entre meio e fins:

“O cientista não apela para a ciência a fim de ver mais claramente em seu próprio pensamento, mas aspira a encontrar resultados que podem ser adicionados à ciência estabelecida. As máquinas não funcionam para permitir que os homens vivam, mas nos resignamos a alimentar os homens para que sirvam às máquinas. O dinheiro não fornece um método conveniente para a troca de produtos, é o fluxo de mercadorias que é um meio de circulação de dinheiro. Finalmente, a organização não é um meio para exercer uma atividade coletiva, mas a atividade de um grupo, seja ele qual for, é um meio para fortalecer a organização.”

Em relação às tentativas de livrar a sociedade da opressão, Weil faz notar que sempre que os oprimidos formaram grupos, seja através de partidos ou sindicatos, reproduziram integralmente todos os defeitos do regime que pretendiam reformar ou derrubar, a saber, a organização burocrática, a inversão da relação entre meios e fins, o desprezo pelo indivíduo, a separação entre pensamento e ação e o uso da estupidez e da mentira como meio de propaganda.

Diante dessa realidade, parece não haver solução para o problema da opressão. De fato, o tom das reflexões de Weil sobre a opressão e a liberdade é um tanto pessimista ou fatalista. Para ela, “a única possibilidade de salvação consistiria numa cooperação metódica de todos, fortes, e fracos, em vista de uma descentralização progressiva da vida social.” Tal afirmação é seguida da constatação de que o absurdo de tal ideia salta aos olhos, pois tal cooperação é inimaginável em uma civilização baseada na rivalidade, na luta, na guerra e, sem tal cooperação, é impossível parar a tendência cega da máquina social para a crescente centralização.

A questão que se impõe então é a seguinte: “em tal situação, o que podem fazer aqueles que ainda persistem, contra todas as probabilidades, em respeitar a dignidade humana em si e nos outros?” A resposta inicial de Weil é bastante desalentadora: “nada, a não ser se esforçar para colocar um pouco de espaço nas engrenagens da máquina que nos esmaga.”

Esse esforço consistiria basicamente em aproveitar todas as oportunidades para despertar um pouco o pensamento (pois a vida será tanto menos desumana quanto maior for a capacidade humana de pensar) e em favorecer tudo o que é susceptível, no campo da política, da economia ou da tecnologia, de deixar aqui e ali, ao indivíduo, uma certa liberdade de movimento dentro dos laços que o cercam pela organização social.

Por mais dura que seja a realidade da opressão, há germes de libertação. Segundo Weil, esses germes de libertação podem ser encontrados em alguns lampejos de luz da nossa ciência e em potencialidades técnicas que não estejam ligadas a uma organização econômica excessivamente centralizada, mas sim a uma indústria dispersa em inúmeras pequenas empresas nas quais se valorizaria o trabalhador consciente e qualificado.   

Mesmo diante da nossa quase total impotência para resolver os males da nossa civilização, há coisas a fazer e a mais importante delas, segundo Weil, é “separar, na civilização atual, aquilo que pertence de direito ao homem considerado como indivíduo e aquilo que é de natureza a fornecer à coletividade armas contra ele, buscando os meios de desenvolver os primeiros elementos em detrimento dos segundos.” Ainda que um tal esforço não tenha êxito ou permaneça sem influência, ele mantém seu valor, pois…

“Somente fanáticos podem atribuir um preço a sua própria existência apenas na medida em que serve a uma causa coletiva; reagir contra a subordinação do indivíduo à coletividade implica que se comece recusando-se a subordinar o próprio destino ao curso da história. Para se determinar a tal esforço de análise crítica, basta compreender que ele permitiria a quem o empreendesse escapar do contágio da loucura e da vertigem coletiva ao reconectar por conta própria, acima do ídolo social, o pacto original da mente com o universo”[41].


[1] Réflexions sur les causes de la liberté et de l’oppression sociale. Paris: Éditions Gallimard, 1955.

[2] Idem. p.8

[3] Idem. p.8

[4] Idem. p.10

[5]Idem p. 13

[6] Idem p.15

[7] Idem. p.15

[8] Idem. p.15

[9] Idem. p. 15

[10] Idem. p.15

[11] Idem. p.16

[12] Idem. p.16

[13] Idem. p.26

[14] Idem. p.26

[15] Idem. p. 28

[16] Idem. p. 29

[17] Idem p.36

[18] Idem p.38

[19] Idem p.39

[20] Idem p.39

[21] Idem p.41

[22] Idem p.41

[23] Idem p.41

[24] Idem p.43

[25] Idem p.44

[26] Idem p.47

[27] Idem p. 49

[28] Idem p.50

[29] Idem p.52

[30] Idem p.56

[31] Idem p.56

[32] Idem p.57

[33] Idem p.57

[34] Idem p. 57

[35] Idem p.58

[36] Idem p.60

[37] Idem p.61

[38] Idem p.68

[39] Idem p.69

[40] Idem p.70

[41] Idem p.98

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