Simone Weil: gênio e santa

Simone Weil foi uma filósofa francesa que exerceu o magistério de 1931 a 1938, com algumas interrupções motivadas ora pelo estado delicado de sua saúde, ora pelo seu engajamento em experiências humanitárias que o debilitavam mais ainda. Sua vida e sua obra traduzem a força moral de um espírito quase redimido. Alma desde sempre arrebatada pela piedade e pela compaixão, capaz de verter lágrimas sinceras ao meditar no sofrimento alheio, Weil era totalmente imbuída de senso de dever moral, atraída como um imã para o bem e a verdade; capaz, consequentemente, de sutilezas filosóficas que causaram forte impressão, mesmo entre os escritores mais experimentados.

Albert Camus foi uma das figuras mais importantes no primeiro período editorial das obras de Simone. Foi ele o responsável pela publicação de várias de suas obras, dentre as quais “Prelúdio para uma declaração dos deveres com o ser humano”, que publicaria, em 1949, com o título L’Enracinement. Em carta à mãe de Simone, datada de 11 de fevereiro de 1951, após tratar de algumas questões editorais concernentes ao espólio de Weil, Camus escreve: 

Simone Weil, eu sei ainda mais agora, é o único grande espírito de nosso tempo e espero que aqueles que reconhecem isso, tenham suficiente modéstia para não tentar se apropriar desse testemunho impressionante. Por mim, ficarei plenamente satisfeito se se puder dizer que, em meu lugar, com os frágeis meios de que disponho, servi para dar a conhecer e difundir sua obra, da qual não se avaliou ainda todo o alcance.

Creia bem que falo aqui sem o desejo de lhe ser agradável; digo somente uma pequena parte do meu reconhecimento para com aquela que lamentarei para sempre não ter conhecido. Agradeço-lhe em todo caso pelas preciosas fotos e pelos textos a mim confiados.

Camus, como se sabe, recebeu o prêmio Nobel de literatura, em 1957. O que poucos sabem, porém, é que, antes de ir à Suécia para receber o prêmio, ele rogou aos pais de Simone Weil que o permitissem passar um tempo no quarto da sua falecida filha, a fim de meditar antes de ir a esse evento tão importante.

Outro distinto e renomado escritor que reverenciou em texto a obra de Simone Weil é o poeta e crítico literário inglês, T.S.Eliot. No prefácio que escreveu para a tradução em inglês de L´enracinement, Eliot faz inicialmente a ressalva de que o único gênero de apresentação digno de acompanhar um livro de Weil é aquele de uma pessoa que a conheceu, que com ela se correspondeu e, principalmente, que teve o privilégio de privar com ela nos cinco últimos anos de sua vida, caso de Gustave Thibon, que escreveu o belo texto que antecede a obra La pesanteur et la grace.

Feita essa ressalva, Eliot explica que, mesmo lhe faltando as referidas qualificações, tem por objetivo, com a redação do prefácio, primeiramente afirmar sua convicção acerca da importância da autora e do livro em questão e, além disso, precaver o leitor contra um julgamento prematuro e uma classificação sumária, “persuadi-lo a controlar seus próprios preconceitos e, ao mesmo tempo, ser paciente com os de Simone Weil”.

Uma vez que toda a obra de Weil é póstuma, explica o poeta, os livros publicados a partir de suas anotações (os famosos Cahiers) se mostram “admiráveis em seu conteúdo e um tanto enganador na forma.” Para Eliot, “Se o caráter fragmentário dos trechos permite apreender sua profundidade e surpreendente originalidade, sugere que sua mente foi atravessada por ocasionais lampejos de inspiração”.

A advertência que Eliot quer dar ao leitor vem da sua própria experiência. Após ler “Attente de Dieu” e “L´enracinement”, ele se dá conta de que a obra de Weil requer um lento processo de compreensão, que inclui não apenas leituras e releituras, mas também um esforço para entender a personalidade da autora. E nesse processo de compreensão, acrescenta, “não devemos nos distrair – como é provável que aconteça em uma primeira leitura – com a questão de até que ponto, e quanto, concordamos com ela ou não. Basta nos expormos à personalidade de uma mulher de gênio, e uma espécie de gênio como o dos santos”.

Na sequência, porém, admite que ´gênio´ pode não ser a palavra certa e relembra a afirmação feita pelo padre com quem Weil costumava conversar acerca de suas dúvidas e crenças: “eu creio que sua alma é incomparavelmente superior ao seu gênio”. Conclui então que Weil “era uma dessas almas que pode ser santa” e que a essa condição de santa em potencial correspondia um temperamento um tanto difícil, aliado a uma personalidade excêntrica.

Eliot faz notar, por exemplo, o contraste entre uma humildade quase sobre-humana e o que parece ser uma arrogância quase escandalosa.” Ela jamais cedia em uma discussão, dizia o seu amigo padre. A interpretação que Eliot dá a isso é que “seu pensamento era tão intensamente vivido, que o abandono de qualquer opinião exigia mudanças em todo o seu ser: um processo que não poderia ocorrer sem dor, e certamente não na conversa.”

Viver intensamente o pensamento significa atravessar o limiar do próprio pensamento e ir além do puramente intelectual. Weil tinha o dom de fazer da filosofia a arte da escrita de si e fazer de si mesma a matéria na qual experimentava as suas próprias reflexões. É o que Pierre Hadot chama de filosofia como modo de vida ou filosofia como espiritualidade. Essa forma de combinar vida e exercício intelectual é própria daqueles que avançam na verdade não apenas em seu sentido epistemológico ou pragmático, mas principalmente em seu sentido moral, real e absoluto, que aponta para a transcendência, para a espiritualização constante, mas também para o indizível. Daí o caráter assistemático e inacabado desse tipo de escrita.

O itinerário de Weil é marcado por essa busca incessante da verdade que ela, inicialmente, acreditava estar restrita aos dotados de uma mente privilegiada, como era o caso do seu irmão, um grande matemático, a quem ela muito admirava. Enquanto se acreditou incapaz de alcançar a verdade, manteve-se em tristeza profunda, até que um dia, conforme narra na sua autobiografia, teve repentinamente a certeza de que “qualquer ser humano, mesmo se suas qualidades naturais forem quase nulas, penetra no reino da verdade reservado ao gênio se ele realmente deseja a verdade e se faz perpetuamente um esforço e atenção para alcançá-la.”

Ela passa, então, a procurar a verdade menos nos livros do que no semblante do sofredor, a quem acolhe com uma compaixão magnânima. Essa compaixão marca mais a sua vida do que os seus pensamentos, pois é através desse sentimento que ela encontra a verdade tão almejada e conclui: “Jesus quer que a verdade seja preferida a Ele porque antes de ser Cristo Ele é a verdade. Se alguém se distancia dele para ir a verdade, não dará muitos passos sem cair em seus braços”. Uma vez nos braços do Cristo, seu trabalho não será mais o de encontrar a verdade, mas de traduzi-la de alguma forma minimamente compatível com a linguagem conceitual a qual se acostumara no seu exercício de docência.

O primeiro ponto, portanto, a destacar da vida e da obra dessa singular pensadora é a força exercida pela compaixão na condução da sua vida, que foi não apenas um testemunho intelectual, mas também um testemunho existencial, que conseguiu equacionar admiravelmente o que se espera de um coração maduro e de uma mente plena.

Filósofos normalmente são atravessados por dilemas éticos e morais que exteriorizam em suas teorias e que acabam sendo algo como o reflexo literário de suas indagações profundas. Weil não apenas fez isso como também doou a si mesma nessa odisseia. Seu corpo lânguido, magro, debilitado foi propositadamente exposto às adversidades de uma fábrica para que ela sentisse na própria carne a opressão da qual se esmerava intelectualmente em dissertar (em 1934 se licencia das atividades acadêmicas para trabalhar como operária em uma linha de montagem de automóveis). Sua fragilidade também foi exposta no campo (trabalhou em uma vinícola) e na guerra (participou da guerra civil espanhola ao lado dos republicanos). Tendo na memória e no coração a lembrança da coragem da Virgem de Orleans, prontificou-se também a ir ao front para resistir contra o nazismo e salvar mais uma vez a França e o ocidente.

Marcada pela dor física, sublimou-a na virtude; desiludida em seus ideais políticos, depurou-os na sua vontade de eternidade; defrontada com os limites da razão diante da complexidade da vida, da morte e de seus mistérios, despertou em si mesma a intuição mística, que elevou a sua inteligência a outro patamar.

Ao ser internada, na Inglaterra, recusou categoricamente qualquer tratamento especial; instada pelos médicos a se alimentar, ingeria diminutas porções de mingau e orientava as enfermeiras a enviarem para as crianças da França o leite que lhe era ofertado. No hospital, ocupou-se ainda de seus escritos e estudou o Bhagavad-gita no original, em sânscrito. Aos que a visitaram nos últimos dias, fez preleções sobre a graça e o caminho da luz. Escreveu ainda ao Comando geral da França, expondo sua decepção por não ter sido enviada em missão para morrer ao lado do seu povo. Ao ser transferida para um sanatório em Ashford, a médica de plantão perguntou àquela paciente singular quem era ela e o que fazia da vida. “sou filósofa e me interesso pela humanidade”, respondeu. Simone Weil morreu aos 34 anos, de tuberculose.

Dos liceus à fábrica

A primeira explicação para o caráter disperso e inacabado da obra de Simone Weil costuma ser a sua morte precoce e a consequente impossibilidade de organizar e amadurecer seus escritos. A forma assistemática, porém, é a que mais se adapta a quem, como ela, faz da filosofia um exercício espiritual, um degrau da sua vertiginosa ascese mística. 

Durante os anos de 1925 a 1928, Weil frequentou, no Lycée Henry IV, as aulas ministradas por Alain, pseudônimo do filósofo francês Émile-Auguste Chartier. Do ilustre professor, ouviu muitas preleções acerca da intrínseca relação entre teoria e prática, entre reflexão filosófica e ação política. Essa influência, porém, não diminui o nosso espanto e admiração com o modo intenso com que a jovem professora internalizou esses ensinamentos.

Em 1933, Simone, além de ser professora de meninas em um vilarejo, auxilia refugiados e trabalha com educação sindical: “sempre que possível, ela toma o trem até as comunidades de trabalhadores de Saint-Étienne para ministrar cursos noturnos e uma série de palestras aos camaradas nas minas[1].” Suas preleções para os operários vão da matemática básica às bases do socialismo científico, de Homero e Ésquilo à relação entre aumento de produção e meios de produção. Do seu salário como professora ela retira o valor exato que os trabalhadores das fábricas recebem e doa o restante para os companheiros desempregados ou para os refugiados[2].     

Em 1934, Weil, então com 25 anos, pede licença da escola em que leciona para escrever o que chama de seu “testamento filosófico”. Trata-se da obra Reflexões sobre as causas da liberdade e da opressão social. Logo após a conclusão do seu “testamento”, ela consegue realizar o “sonho” de trabalhar como operária e experimentar na própria pele as condições vividas pelos operários na fábrica.

 A jovem, de saúde frágil, acometida desde sempre por terríveis crises de enxaqueca, sai decidida do conforto da casa dos pais, aluga um quartinho ao lado da fábrica e passa a viver exclusivamente do seu salário de operária, trabalhando dez horas por dia em uma linha de montagem, encaixando pesadas peças de metal com uma única mão:

O desejo de Weil em trabalhar na fábrica alinha-se a uma honrosa tradição de experiências filosóficas de ruptura, cujo objetivo manifesto é o de dar as costas a um mundo supostamente alienado e, ao ingressar numa forma de vida ou num ambiente mais próximo à realidade, alcançar maior clareza de pensamento. Assim como Buda fugido do palácio, Diógenes e sua vida no barril ou Thoreau com sua cabana em Walden Pond[3].

A experiência na fábrica deveria ser também um projeto de pesquisa, mas o esgotamento físico trouxe o inconveniente de lhe comprometer, inclusive, a capacidade de pensar: “ela não tinha contado com esse profundo cansaço que se infiltra em todos os membros e não lhe franqueia energia nem mesmo para fazer o que havia se proposto: registrar de maneira acurada em seu diário de fábrica tudo que havia vivenciado e refletir a respeito[4].”

A jovem Simone, obviamente, era incapaz de assumir um papel minimamente produtivo no processo de produção. Durante os seis meses de sua experiência fabril, jamais conseguiu cumprir a meta do número de peças estipulado, em vez disso gerava regularmente produtos defeituosos: “peças simplesmente caem ou estragam, ferramentas essenciais são por ela trocadas, perdidas, inseridas de maneira errada e, com muita frequência, esquecidas na máquina depois do prontas[5]”.

A monotonia e a sobrecarga do trabalho provocam-lhe constantes blecautes mentais, além de um sentimento de fracasso, humilhação e sensação de subjugação. Ao encerrar sua aventura na fábrica ela está com a saúde definitivamente comprometida. Nas suas palavras, ela se sente marcada para sempre com o “ferro em brasa da escravidão”, mas está satisfeita por ter recolhido material in loco para a resolução do problema de uma libertação progressiva dos trabalhadores. Sua lucidez e seu pessimismo agora são maiores e ela afirma com propriedade que, ao pensar que a maioria dos chefes bolcheviques – que fazem belos discursos sobre a classe operária – nunca pisaram numa fábrica, a política lhe parece uma grande palhaçada. É a partir daí que ela começa a se desencantar com a ideologia de esquerda e começa a repudiar o comunismo.   

A experiência na fábrica colocou Simone Weil em contato com um padecimento não apenas de ordem física, mas também moral: o sentimento de quase anulação daquilo que se configura como especificamente humano, a possibilidade de ser reduzida a simples animal de carga e o consequente sentimento de perda de dignidade pessoal e de amor-próprio. Paradoxalmente, essa experiência lhe trouxe a certeza de que a anulação do indivíduo não poderia ser absoluta, que havia um outro patamar de dignidade que, uma vez atingido, não poderia ser expropriado por nenhuma ação alheia ou circunstância exterior. Desfeito o sentimento de dignidade pessoal tal como fora fabricado pela sociedade, tornava-se possível alcançar um outro modo de autonomia e de consciência de si.   


[1] As visionárias. p.58

[2] idem

[3] Idem p.113

[4] Idem p.114

[5] As visionárias p. 115

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